segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Nós e os tiros na madrugada

Há umas noites atrás, dormia eu profundamente quando acordei com um som forte e seco. Olhei para o lado "o que foi isto?" O meu marido, já a levantar-se, diz "Tiros." Ele respondeu no plural, embora o máximo que o meu sono me tenha permitido ouvir tivesse sido um - o único que ouvi na minha vida inteira, diga-se! Aguardei um pouco na expectativa de ouvir alguma sirene, de polícia ou resgate. Nada. O meu marido viu pela janela que várias outras pessoas olhavam pelas suas janelas. Algum aglomerado na rua. Nada de sirenes. Caí no sono outra vez. No dia seguinte, contava-se pela rua que um homem tinha baleado uma mulher: cinco tiros, dois certeiros. Foi levada para o hospital, segundo consta. Parece que foi passional. E nada mais consta. 

Eu e as medidas de tempo

Tenho reparado que a minha noção de tempo/distância aqui em São Paulo tem como medida 15 minutos. Passo a explicar: se eu demorar 15 minutos a chegar a algum lugar, é ótimo. Aliás, é quase surreal. Se demorar 30 minutos é bom, a beirar o muito bom. 45 minutos é aceitável. 1 hora já é impraticável. Mais de 1 hora é imponderável. Portanto, concluo que de "até que é possível" para "nem pensar" vai uma distância de 15 minutos apenas.
E nisto se passaram 15 minutos.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Eu e as memórias

A memória é um dos maiores mistérios com que nos deparamos. Porque nos lembramos de certas coisas e esquecemos outras? Claro que há um certo instinto de sobrevivência e tendemos a enterrar, lá bem no fundo, algumas coisas que vivemos e nos deixaram feridas. Por outro lado, o inverso também é totalmente verídico: há tanta coisa que gostaríamos de esquecer e fica ali a martelar, a pingar, a mostrar que não nos deixou, provavelmente pelo mesmo instinto de sobrevivência, de nos sinalizar por onde não é o caminho, e há também outras tantas coisas que gostaríamos de deixar intactas na memória e que, infelizmente, com o passar dos anos se desvanecem. Há ainda aquelas coisas, aparentemente insignificantes e inúteis, que ocupam espaço na memória. Vá-se lá entender...
Todas as semanas, quando dou uma aula nos Jardins, ouço o senhor amolador de facas a passar na rua. Todas as semanas o ouço, naquela melodia tocada na gaita ou qualquer instrumento similar, e todas as semanas aquilo me remete para a minha infância e para os tais mistérios da memória. Todas as semanas surge aquela melodia e, por milésimos de segundo, o meu cérebro engana-se e espanta-se como se fosse a primeira vez que isso acontecesse aqui em São Paulo. Fica estupefacto perante a coincidência de ouvir aquela mesma melodia, tocada a milhares de quilómetros e mais uns tantos anos de distância. Depois como que volta a si mesmo e percebe que já foi apanhado nessa surpresa vezes sem conta, pelo que nem deveria mais ser percebido como uma surpresa. Ainda assim, sempre se surpreende...o que me surpreende. O cérebro, onde as memórias estão armazenadas é, no fundo, o grande X da questão. Quantas vezes vemos uma publicidade e pensamos exatamente a mesma coisa que pensámos quando o vimos vezes anteriores, ou quando passamos num lugar nos acometem as mesmas reflexões? Como se...alguma coisa em nós estivesse "formatada", como se alguma espécie de gatilho fosse disparado no automático. O nosso cérebro, em certa medida, parece ter "vida própria": pula de pensamento em pensamento, de reflexão em reflexão sem que tenhamos muito controle aparente nisso.
Recordo aquela melodia, igual, absolutamente idêntica, dos tempos em que vivia na Póvoa de Santo Adrião, na casa em que vivi desde que nasci até aos 11 ou 12 anos de idade. Não sei porque me lembro daquela melodia, mas lembro-me claramente e, cada vez que a ouço aqui em São Paulo, recordo por breves segundos aquela Praceta, calma no fim-de-semana. Junto com a melodia, recordo cada pedaço que a minha memória permite daquela Praceta. Há 20 anos atrás, jamais poderia supôr que aquela melodia banal, à qual nunca dei especial importância - ou, pelo menos, não que me lembre-, me fosse remeter para aqueles tempos. Preferia lembrar-me melhor de outras coisas. Das pessoas, essencialmente. Do tempo que passei com elas. Tenho memórias cada vez mais difusas da minha infância. Mas, como dizem os grandes sábios, aquilo que nos lembramos da nossa vida não É a nossa vida. É apenas o que nos aconteceu ao longo do caminho. O que a vida realmente É, é um mistério ainda maior do que o da memória. Um imenso, cativante e admirável mistério.



terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Nós e o bloco de Carnaval

Nos últimos anos habituamo-nos a ver da janela o Bloco dos Esfarrapados a passar na rua. O pequenote, alegremente acenava e entusiasmava-se com a passagem da multidão. Este ano, resolvemos acompanhar o Bloco. O som da música começou a ouvir-se, ao longe. "Estão a chegar!", dizia o pequenote. "Vamos! Vamos!" Fomos, mas não muito longe: só uma quadra. O pequenote, na sua fantasia de palhaço, fez sucesso, mas o que não fez qualquer sucesso com ele foi a espuma que alguns teimam em jorrar em todas as direções. Achou-a "grudenta e nojenta!" Depois daquele primeiro contacto com a espuma, continuou a caminhar, desconfiado, cada vez mais desconfiado. Deixou de acenar ou retribuir qualquer tipo de simpatia que lhe era dirigida. Até que exteriorizou "quero voltar para casa". E lá voltamos, na contramão da multidão.
Ao que parece, o pequeno prefere ver a multidão pela janela e curtir o Carnaval à sua maneira.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Eu e as metamorfoses de São Paulo

Uma coisa que eu acho fascinante em São Paulo é a velocidade a que as coisas mudam. Onde numa manhã há um caminho de terra, à tarde há uma calçada; onde num dia há uma obra disforme, semanas depois há uma loja, um restaurante ou um supermercado. A cidade gira, roda e rodopia e, se ficarmos atentos, notamos pequenas ou grandes diferenças aqui e acolá.

É verdade que o ritmo alucinante e frenético de São Paulo pode ser desconcertante e exaustivo, mas também é verdade que esse é um dos encantos da cidade.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Coisas que me fizeram parar




Ontem foi um dia histórico: o primeiro arco-íris que vi em São Paulo, ou seja, o primeiro arco-íris que vejo nos últimos 3 anos e 1 mês! Não que em Lisboa os visse a toda a hora. Nem me lembro do último que vi por lá. Simplesmente sei que estou aqui há 3 anos e 1 mês e que ainda não tinha calhado de o ver por aqui. Em Lisboa, lembro-me bem de um dos últimos que vi: ia de carro, de manhã cedo para ir dar aulas em Mafra, e lá apareceu ele, um arco colorido bem desenhado no céu. Pensei na história do pote de ouro no final. Lembro-me bem desse arco-íris porque, ao contrário do que costuma acontecer, em que ele espreita, nos sorri e faz sorrir e logo se desvanece, esse acompanhou-me numa boa parte da viagem. Lá ia eu, a caminho de Mafra e prestes a encontrar o pote de ouro!
Ontem, como nas outras vezes, parei, com um sorriso estupidificado no rosto. O que é que eu posso fazer? Eu sou dessas pessoas que param a olhar para o arco-íris, o pôr-do-sol e outras tantas belezas da natureza. Chamem-me tola, mas momentos desses fazem-me esquecer de tudo, parar no tempo e no espaço e apenas Ser. Ontem, quando o tempo voltou a existir para mim, eu pensei só numa coisa: quem me dera que o meu pequenote estivesse aqui para ver isto! Ele, no auge dos seus 4 anos, nunca viu nenhum arco-íris e eu, o que desejo, é que ainda muitos arcos-íris o façam sorrir e, já agora, que ele encontre o pote de ouro no final!

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Eu e os reflexos




Um destes dias, ia a caminhar pela calçada e detive-me numa imagem: um bonito céu cheio de nuvens desenhadas. Quando foquei o olhar de outra forma, percebi que se tratava de uma enorme poça de água suja na estrada, próximo à calçada. Foquei novamente o olhar e lá estavam as nuvens a passear e desenhar formas numa dança lenta. Embora não se tratasse do mar, mas de uma simples poça, lembrei-me de Pessoa:

"Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu."


Passado algumas semanas, eis que me detive nas nuvens espelhadas novamente. Desta vez num dos arranha-céus de São Paulo. Aqui a paisagem era ainda mais cativante pois as nuvens refletidas misturavam-se com as nuvens no céu, numa simbiose quase perfeita. (Lembrei-me de outro grande pensador: Platão e a sua alegoria da caverna. Afinal, o que é a realidade e o que é reflexo dela?..)

Uma coisa tenho percebido: a beleza nem sempre se encontra nos lugares mais óbvios. Por isso, meus caros, olhos e coração bem abertos para o Mundo!