sexta-feira, 27 de março de 2020

Eu e os outros (ou: Nós)

Hoje cortei as unhas com o corta-unhas. Todas elas. Os cinco dedos de cada mão. Estão todas cortadas (mais ou menos) por igual. Há cerca de uma semana atrás já tinha feito esse ritual. E na semana anterior também.
Vocês podem estar a perguntar-se o que isso tem de tão especial que mereça aqui registo. Bom,
a única vez em que isso aconteceu, com esta regularidade e consistência, nos últimos 25 anos foi há mais de 10 anos atrás. Foi logo na sequência de saber que estava grávida. A médica advertiu-me: "Joana, não pode roer as unhas agora. É perigoso para o bebé." Desde esse dia até ao nascimento do Mateus não roí uma única unha e sem o menor esforço ou dificuldade. Depois dele nascer, infelizmente, aos poucos, retomei esse péssimo hábito. Nos últimos 2 anos, diminuí bastante, mas não consegui livrar-me em absoluto. Não até agora. A ameaça do coronavírus paira sobre todos nós. Evitamos o mais possível tocar no rosto, que dirá roer as unhas? Sem hesitar mudei esse hábito. Mais uma vez, fi-lo sem o menor esforço, praticamente sem necessidade de me policiar. Não tenho medo de ficar doente por mim. (Ainda) Sou jovem e saudável e, por isso, acredito que não ficaria em maus lençóis - embora tenha consciência que, com este vírus, tudo pode acontecer. Preocupo-me, sim, pelos outros, pelas pessoas que me são próximas e a quem só desejo bem. Preocupo-me pelos outros que, conhecendo ou não, eu pudesse vir a prejudicar. Preocupo-me não por mim, mas pelos outros. Isso faz toda a diferença. Assim como há 10 anos me preocupava com o Mateus, o meu bebé. Quando pensamos nos outros, sem dúvida alguma, somos a melhor versão de nós mesmos. Somos mais fortes, mais focados, mais dedicados, mais gentis, mais completos, mais felizes. Ser altruísta é como ter um boomerang nas mãos: atiramos o melhor de nós e a vida devolve-nos no sentimento de realização e felicidade que isso nos traz. Quanto mais damos, mais temos para dar, porque quanto mais damos, mais somos. E quanto mais somos, mais queremos Ser. Nas palavras de Mahatma Gandhi

"O melhor modo de se encontrar a si mesmo é perder-se a servir aos outros." 

Acrescento: quando servimos aos outros, servimos a nós próprios, e daí não advém qualquer tipo de egoísmo, pois se  há coisa que já podemos concluir de tudo o que estamos a viver nestes tempos difíceis é que a grande maioria de nós andava a viver um grande equívoco: não existe (eu e) o outro. Estamos todos juntos neste barco. Somos todos parte da mesma coisa. Só existe "Nós". Estamos todos interligados. Sabem aquele velha história de uma borboleta bater as asas e, no outro lado do mundo, provoca uma tempestade? Pois é: no outro lado do mundo, alguém come alguma coisa e o mundo inteiro fica virado de cabeça para baixo. Ao seu lado alguém espirra e outro alguém fica doente. Alguém usa uma máscara e protege vários de adoecer. Alguém se faz presente, mesmo à distância, e faz-nos sorrir. Alguém fica em casa e garante a segurança de todos. Todos. Estamos todos juntos nisto. Somos um imenso organismo de mais de 7 biliões de elementos que, mais do que nunca, tem de agir em consonância. 
Que este seja um tempo de acordar, de elevar a nossa consciência e que cada um de nós possa encontrar-se. Em pequenos gestos. Em grandes sacrifícios. (Nós) Vamos ficar todos bem.


sexta-feira, 6 de março de 2020

Nós e os bastidores da Gulbenkian

A Sala São Paulo é um dos meus lugares preferidos em São Paulo. Além da sala de concertos ser incrível, com uma acústica muito especial - e a OSESP é uma excelente orquestra -, o edifício é muito bonito, uma estética impressionante, num estilo neoclássico, que mistura elementos do passado com elementos modernos.
Ontem fiz a visita guiada ao edifício. É um programa que vale a pena fazer. Já no final da visita, dentro da sala de espetáculos, a guia explicava o funcionamento de várias coisas, entre elas, um estrado que sobe e desce no palco e que serve para elevar o piano de cauda. "Lá em baixo, existe uma sala especial, de manutenção, onde guardamos diversos instrumentos e materiais." No mesmo instante, veio à minha memória uma sala idêntica em que estive há muitos, muitos anos atrás - diria que cerca de 25 anos. A memória é uma coisa curiosa: lembramo-nos das coisas não exatamente como elas aconteceram, mas de acordo com a narrativa que fomos construindo com o passar do tempo. Se é verdade que "quem conta um conto, acrescenta um ponto", nós mesmos, frequentemente, acrescentamos ou subtraímos pontos nas histórias que contamos a nós mesmos. A memória que tenho daquele dia é cheia de espaços em branco. Lembro-me daquele dia como me lembro do que sonhei ontem: algumas partes com mais nitidez, outras nebulosas e, de um modo geral, cheia de cortes abruptos entre uma cena e outra. (Aliás, essa semelhança entre o que sonhamos/imaginamos e o que realmente vivenciamos é muito interessante: a mente recorda da mesma forma aquilo que vivemos e é real, digamos assim, e aquilo que sonhamos ou planeamos para o futuro... Como dizia Shakespeare "Somos feitos da mesma matéria dos sonhos".)
Naquele dia, o que tenho a certeza é que estávamos na Gulbenkian. Era a 8ª Sinfonia de Mahler e nós, enquanto Coro Infantil, participávamos apenas em alguns momentos da obra, por isso, não ficávamos o tempo inteiro no palco: aguardávamos pela nossa participação em uma sala - acho que a sala em que o Coro Gulbenkian normalmente ensaiava - com as queridas funcionárias Isabelita e a Guarete. Não sei quem teve a brilhante ideia mas, a dada altura, achámos que era interessante dar uma voltinha por ali, explorar a Gulbenkian. A sala tinha tantas crianças cheias de energia - coitadas da Isabelita e da Guarete - que, nem deram por sairmos de lá. Não me lembro exatamente qual era o grupo. Acredito que as de sempre: eu, Ana, Andrea, Inês, Margarida, Mariana, Raquel, Rita F., Rita G. Tão pouco me lembro que caminho fizemos ou quem liderou as "tropas". Sei que fomos andando por portas e corredores e, inclusivamente, tenho uma vaga ideia de termos andado de gatas num corredor para não sermos vistas! Tanto andamos que chegamos a uma sala que parecia uma espécie de arrecadação e, segundo o que me lembro, tinha vários instrumentos de percussão. Ali andávamos a explorar o espaço e alguém comentou algo como "Já repararam que se ouve uma música por aqui?" Ouvia-se, ao longe. Até que... algum tutti da orquestra que fez tudo ressoar ali nos despertou "Estamos em baixo do palco!!!" Corremos dali. Andamos vá imaginar-se por onde, e recordo-me depois de estarmos sentadas a conversar numa sala ampla, com pouca luz e vazia. Seria algum espaço do Museu Gulbenkian? O que conversámos? Não faço ideia. Quem achou que era melhor voltar? Muito menos. Quem sabia como encontrar o caminho de volta à sala onde estavam todos os nossos colegas? Não sei, mas chegamos a tempo e horas. Mais uma vaga ideia: de algum colega (talvez o André G. ou o Nuno L.) ter perguntado por onde tínhamos andado e, após a nossa explicação, ter comentado "Vocês são malucas." E fomos mesmo, mas depois de tanta inconsciência, entramos no palco com todos eles e vivemos o que, tenho a certeza, foi uma das experiências mais marcantes das nossas vidas: a parte final da "Sinfonia dos Mil" de Mahler. Se me recordo com exatidão daqueles minutos? Não, mas guardo comigo até hoje a emoção de fazer parte daquela imensa massa sonora. Somos privilegiados por ter vivido aquela experiência. Aquela sensação incrível de ser parte de uma coisa maior. As memórias que mais nos acompanham são aquelas que estão carregadas de emoção e, acredito que todos nós, quando ouvimos aquele "Alles Vergängliche ist nur ein gleichnis" de Goethe, no final da Sinfonia, nos arrepiamos até à medula. Curiosamente, essa frase pode ser traduzida como:

Tudo o que passa
É mera aparência

Ou:

O que não é eterno
É apenas uma alegoria.


Tudo aquilo é eterno para nós.