domingo, 31 de dezembro de 2023

210-365

 


Ao entrar num novo ano, todos temos tendência a começar uma corrida. Corremos atrás daquela boa forma física, da promoção no trabalho ou de um trabalho novo, atrás de um novo amor, de uma nova casa ou carro, corremos atrás de melhores hábitos, de comer melhor, dormir melhor, de ler mais, corremos atrás de números mais expressivos na conta bancária. Como em qualquer corrida, começamos com ânimo, passadas largas, confortáveis, confiantes. Corremos, corremos, com os olhos fixos no nosso objetivo que está em algum lugar lá fora, à nossa frente. Corremos até que começam a faltar-nos as forças, ou começamos a esbarrar em obstáculos. Quando já não conseguimos correr, andamos. Paramos. Ganhamos energia, e talvez recomecemos a correr, ou talvez mudemos o foco para correr atrás de outra coisa que apareceu no caminho. Talvez consigamos correr até alcançar o nosso objetivo e, então, após um pico de felicidade, percebemos que estamos tão vazios quanto antes. Porque no meio da correria, esquecemo-nos que A Vida acontece em nós, por mais que passemos a vida a correr atrás dela.
Neste novo ano, desejo que possamos sentir mais a vida que nos corre cá dentro. Que possamos perseguir os nossos objetivos mas sem esquecer que é cá dentro que tudo acontece, que tudo pulsa. A nossa maior corrida deste ano deveria ser para dentro, em direção a nós mesmos, pois é lá que está o que tanto buscamos: completude, leveza e serenidade. É de dentro que a felicidade brota.
Que o novo ano nos leve a correr na direção certa.

Eu e "A vida secreta de Walter Mitty"

 "A vida secreta de Walter Mitty". Que filme bonito e inspirador!

Walter Mitty, um homem comum, que faz o mesmo trabalho de revelar negativos há muitos anos, perde o negativo que seria a capa da última edição da revista para a qual trabalha. A busca pelo negativo, leva-o numa aventura pelo mundo. Ele que, frequentemente, se perdia em divagações no seu mundo interior, encontra-se nessa viagem em que vive experiências incríveis! Quando finalmente encontra o fotógrafo, Sean, que poderia ter o negativo perdido, vemos uma das cenas mais bonitas do filme:

Walter Mitty: Quando vai fotografar?

Sean: Às vezes eu não sei. Se eu gosto de um momento, para mim, pessoalmente, eu não gosto de ter as distrações da câmara. Eu apenas quero ficar nele.

Walter: Ficar nele?

Sean: Sim. Ali. Bem aqui.

Esta cena condensa bem a mensagem do filme: a importância de viver e prestar atenção ao momento presente, a importância de ver o belo à sua volta, e viver e sentir o belo dentro de si mesmo. E a busca de Walter Mitty é, fundamentalmente essa: por si mesmo. Por mais que o faça ao redor do mundo, no final, o filme é sobre um retorno a si mesmo.

"Ver o mundo, as coisas perigosas por vir, ver por trás dos muros, se aproximar, encontrar o outro e sentir. Esse é o propósito da vida."
(Lema da revista)

209-365

 Se nos perguntarem qual é a palavra mais bonita da nossa língua, provavelmente vamos escolher um substantivo: amor, saudade, fé, sonho, amizade, esperança. Habituamo-nos a valorizar essas palavras bonitas, cheias de potenciais significados. Mas tenho-me apercebido, cada vez mais, que esses substantivos tão bonitos são vazios sem um verbo. Os verbos são as palavras mais poderosas da nossa língua: é o verbo que coloca o substantivo em movimento. Sem verbo, são apenas palavras, inertes, vazias. É o verbo que os concretiza, que os preenche, que os anima. "Dar amor", "espalhar amor", "demonstrar amor", "fazer amor". Amor é apenas uma palavra. Perto do verbo certo, é uma das coisas mais bonitas da nossa existência. "Exercício" é só uma palavra, mas "fazer exercício" pode fazer uma diferença enorme na nossa saúde. "Sonho" é apenas uma palavra, mas "concretizar um sonho" pode dar sentido a uma vida. "Fé" é apenas uma palavra, mas "ter fé" pode mover montanhas.

Então, neste novo ano, eu desejo que possamos escolher, da melhor forma possível, os nossos verbos: dar amor, ter fé, perseguir objetivos, ousar, perseverar, construir, evoluir, agir, crescer, renascer e nunca, nunca, desanimar ou desistir.
Feliz 2024.

domingo, 24 de dezembro de 2023

208-365

Natal é sinónimo de Amor. É o momento em que celebramos o nascimento de Jesus Cristo, que foi um dos Mestres que mais e melhor nos ensinou sobre o Amor. Também é o momento em que as famílias (de sangue e as que se escolheram ao longo do caminho) se reunem e celebram os laços de amor que as unem.
Hoje, eu escolhi celebrar o amor também de uma forma diferente: em algum lugar de São Paulo, algumas pessoas vão receber a minha doação de sangue e isso talvez as salve, ou ajude. Talvez se sintam cuidadas e amadas pelo Universo. Talvez as suas famílias se sintam mais confortadas, ou esperançosas. Talvez o meu gesto seja recebido em algum lugar da cidade com gratidão. Não a mim, mas ao cosmos, a Deus, ao Universo! Talvez o meu gesto renove a fé de alguém! Este gesto simples pode assumir significados que não poderei nunca supôr, mas quero acreditar que, nesta teia fina e subtil que nos conecta a todos, a minha ação vai, de alguma forma, em algum lugar, reverberar Amor em alguém, da mesma forma que reverbera em mim. Amor à Vida, amor a algo maior que sempre nos guia e protege. Porque não fui eu que ajudei ninguém: eu sou apenas uma minúscula engrenagem nesta grande roda da qual todos fazemos parte. Algo maior que eu agiu, amorosamente, através de mim.

Desejo a todos um feliz Natal, com muita harmonia, esperança e, sempre, sempre, muito amor.

207-365

Procurar os presentes pela casa. O cheiro do musgo do presépio. As luzes da árvore. Ajudar a avó a bater a massa das filhós e vê-la aconchegar, num cobertor quentinho, a massa com a cruz de Cristo desenhada. Juntar a família. Bacalhau. Cocktail de camarão. Salada de frutas. Doces. Mais doces. Mais salada de frutas. Um filme. Perguntar que horas são. Jogos. Perguntar quanto tempo falta para a meia-noite. Conversa. Risos. Filhós. Perguntar que horas são. Montes de presentes organizados para cada pessoa. Os mais novos começam a abrir. Tentar adivinhar o que é o presente apalpando e abanando o embrulho. Surpresas. Alegrias. Mimos. Abraços e beijos. Amor. Pilhas de papel de embrulho rasgado. Dormir tarde depois de montar alguma coisa nova que ganhou de presente. Deixar todos os presentes organizados num novo monte no quarto, agora fora do papel de embrulho. Dormir com um sorriso no rosto. Acordar mais tarde, com o mesmo sorriso. Estrear a roupa nova que a avó fez. Mais comida deliciosa. Mais doces. Mais filhós. Frio. Aquecimento ligado. Sair para ver as luzes de Natal. Não encontrar nenhum café aberto. Voltar para casa. Brincar com as coisas novas. Procurar lugar no quarto para as coisas novas.
No próximo ano, haveria mais. Houve sempre mais. (E tudo ainda há em mim, eterno.)

206-365

 Quem nunca presenciou (ou protagonizou) o célebre "mas eu quero!.." de uma criança pequena? Talvez por ser época do Natal ou, simplesmente, porque tenho refletido um pouco sobre este assunto e, por isso, estou mais atenta a ele, tenho presenciado vários pela cidade. O "mas eu quero" começa subtil...A criança vê alguma coisa que se torna objeto do seu desejo, e exterioriza "mãe/pai, posso...?..." Por alguma razão que, certamente, será válida, o pai/mãe recusa. A criança insiste, entre "por favor" e súplicas de "só um" ou "só hoje". É nesse momento que o pai/mãe, entra com a fase dos argumentos. A criança até parece estar a ouvir. Os argumentos sucedem-se, lógicos, racionais, praticamente imbatíveis. A criança parece prestar atenção. Por momentos, fica em silêncio. O pai acha que venceu na conversa mas, quando termina a sua explanação, o "mas eu quero!" sobe de tom. Vem acompanhado de choro ou mesmo alguns gritos, e torna-se repetitivo, quase um mantra entre as lágrimas "mas eu quero...mas eu quero..." Não há argumento nenhum que o demova. Nem muito menos a criança entende que, por vezes, a recusa do pai/mãe é o melhor para ela. (Não comer aqueles doces antes do almoço, por exemplo, é a melhor opção...)

Fiquei a pensar quantas vezes nós, adultos, ficamos igualmente presos nesse "mas eu quero"...Perdidos em ideias fixas de coisas que achamos que nos vão fazer felizes. Irracionalmente, por vezes contra todas as evidências e argumentos, prevalece o "mas eu quero". Ficamos enredados nesse desejo que nos cega para outras possibilidades. E assim como a criança não entende que, algumas vezes, o "não" é a melhor coisa para ela, também nós temos dificuldade de perceber que, por vezes, não termos o que (achamos que) queremos, é a melhor coisa que nos pode acontecer. A diferença é que a criança, na maior parte das vezes, passado poucos minutos já esqueceu aquilo, mudou o foco e ficou feliz com outra coisa qualquer, e nós, adultos, muitas vezes ficamos estagnados a olhar para aquela porta que se fechou sem perceber que outras tantas estão abertas. Ao invés de pensar "mas eu quero", ouse questionar "mas eu preciso?" Talvez a resposta o ajude a seguir adiante, para a próxima porta aberta.

205-365





Ontem, durante a minha última aula do dia, a noite começou, aos poucos, a surgir no céu. A minha aluna, ao olhar pela janela, comentou "Olha só como o céu está lindo!.. Mais claro em baixo e mais escuro em cima." Ambas tiramos fotografias e contemplamos um pouco aquele azul. Eu conheço-o bem. Aquele azul vive dentro de mim, enraizado, desde aqueles fins de tarde de treino de futebol em que me preenchia por completo no Estádio Universitário em Lisboa. Sentava-me em qualquer lugar e contemplava aquele céuzão abobadado sobre a cabeça, naquele azul forte, quase metalizado. Aquele mesmo azul que eu contemplava da claraboia da casa de São Julião. Aquele azul que me acompanhava tantas vezes no regresso a casa em Lisboa, e que me tem acompanhado várias vezes aqui nas últimas semanas. Claro, nunca é exatamente o mesmo azul, é sempre um novo azul, um novo céu mas, ainda assim, é sempre "aquele azul": o que mexe cá dentro. São versos diferentes, mas sempre poesia para os meus olhos.

sábado, 16 de dezembro de 2023

204-365

 


Alguns professores incentivam-nos a não ouvir gravações das músicas que estamos a estudar sem antes as amadurecermos no nosso estudo. Isto porque é muito comum ficarmos presos a determinada gravação, ou mesmo presos a interpretações nossas do passado. A interpretação que escolhemos fazer deve ter por base opções nossas, daquele momento, e não "vícios de audição". Devemos procurar, investigar, refletir, olhar para aquela partitura como quem a vê pela primeira vez, e olhar para nós mesmos sem interferência de memória: é a Verdade de quem somos, agora, que deve transbordar na interpretação, e é a Verdade que encontramos naquela música, naquele momento, que devemos abraçar.
No yoga, esse movimento é a purificação da memória: para termos uma interação profunda com o objeto, - seja uma coisa, uma pessoa, uma sensação - é preciso olhá-lo com o olhar puro, sem "cargas" de interações anteriores, sem pré-conceitos, sem expectativas. Devemos estar inteiros nessa interação, com presença, para que isso se torne uma interação de quem somos com o que o objeto da nossa interação é, agora. É um exercício exigente, desafiante, mas profundamente enriquecedor: olhar para aquela pessoa, aquele objeto, naquele momento, como ele se nos apresenta ali e não através dos véus do nosso julgamento ou expectativa que toldam a nossa visão. É como regressar a um livro ou um filme anos mais tarde: nunca são os mesmos, porque nós não somos os mesmos, o nosso olhar é outro, por isso, a percepção e a interação que se criam são outras. Purificar a memória é um esforço para criar essa Abertura: permitir-se olhar com o olhar de quem nunca viu e, assim, entrar num espaço desconhecido, novo.

203-365

 Hoje fiz algumas compras no mercado e depois uma caminhada até casa com as compras na mão. Uma das sacolas estava mais pesada. Caminhei alguns metros com ela na mão, e comecei a sentir cansaço. Optei, então, por encaixá-la entre o braço e o antebraço. Bem mais fácil e confortável. Caminhei uns tantos metros com ela assim, até que começou a "marcar-me" o braço. Voltei à posição inicial, procurando a posição em que conseguia manter o menor esforço possível no braço. Fui alternando de braço. Sempre à procura da posição de menor esforço muscular.

Este trajeto a carregar este peso, fez-me refletir nos pesos que carregamos na nossa vida: às vezes, fazemos esforço a mais, desnecessário, perante algum desafio. Outras vezes, não procuramos uma forma melhor de lidar com esse peso, ficamos presos a uma única forma de o carregar, por vezes, sofrida. E a verdade é que há sempre alguma forma de criar menos esforço, de descontrair alguma parte de nós para a qual não estávamos atentos. Mesmo carregando o mais difícil dos pesos, há sempre alguma coisa que podemos soltar (em nós) e tornar menos sofrido o trajeto enquanto carregamos esse peso. Por vezes, aceitar que temos que levar aquele peso connosco até um determinado lugar, é o suficiente para reduzir o esforço empregue. A resistência retrai-nos e dificulta o trajeto. A aceitação abre o caminho. E, seja como for, é preciso ter em mente que há sempre um momento de chegar ao destino, pousar o peso e, finalmente, abandoná-lo. Já Jesus dizia, sabiamente,  "Por isso, não fiquem preocupados com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã trará as suas próprias preocupações. Para cada dia bastam as suas próprias dificuldades."

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

202-365

É muito comum os alunos ficarem ansiosos quando existem pausas na música. Não raras vezes, tendem a querer "encurtar" o tempo da pausa e dar seguimento à música. Eu mesma já passei por isso. Aquele silêncio entre as notas pode, por vezes, deixar-nos inseguros, desconfortáveis. No geral, a verdade é que o silêncio tende a incomodar-nos. Qual de nós não passou já pela experiência de estar com estranhos no elevador e sentir na pele aquele silêncio quase cortante? Mas o silêncio faz, sim, parte da música e deve, sim, fazer parte da nossa vida. Uma das coisas mais belas de assistir a um concerto numa sala de concertos é, precisamente, a oportunidade de mergulhar no silêncio mágico que ali acontece: antes da música começar, entre as notas, imediatamente após a música terminar. É nesse silêncio que a música reverbera (principalmente em nós). É nesse silêncio que nos percebemos. É nesse silêncio que se cria o espaço para que a música possa acontecer. E assim é na vida: é preciso cultivar a pausa. A pausa antes de responder. A pausa antes de reagir. A pausa após a nossa reação automática. A pausa antes de comer aquele doce. A pausa antes de escolher. A pausa entre uma respiração e a outra. A pausa antes de começar a azáfama do dia. A pausa antes de terminar o dia. É nessas pausas que ampliamos o espaço para a investigação e a compreensão de nós mesmos. É a pausa que nos tira do piloto automático e pode levar-nos a melhores escolhas. "A música acontece no espaço entre as notas" (Debussy). Tão essencial quanto ouvir as notas, é aprender a ouvir os silêncios. E tão importante como as nossas ações, é aprender de onde elas vêm. "O silêncio não é vazio, é cheio de respostas."

201-365

 Hoje é dia do meu maninho. E é tão fácil escrever sobre ele. O meu maninho é uma das pessoas que eu mais admiro no mundo! O seu carácter, a forma como encara a vida, o ser humano em que se tornou, e que escolhe, a cada dia, ser, enche-me de orgulho. Nunca vi o meu irmão ser desrespeitoso, desagradável com quem quer que fosse. É uma das pessoas mais serenas e centradas que conheço. Doce, carinhoso, altruísta, faz o bem a quem o rodeia. Merece toda a felicidade do mundo! E fico muito feliz de ver que ele tem encontrado e abraçado essa felicidade. Por mais que nos vejamos pouco e não falemos tanto quanto eu gostaria, tem lugar cativo e especial no meu coração. Desde que era aquele miúdo lindo que eu adorava empurrar no carrinho. Foi com aquele miúdo que eu comecei a perceber, realmente, o que era amar. Porque eu podia empurrar o carrinho até me doerem os braços, e continuar até ele adormecer. Porque eu sempre fiquei feliz só de olhar para ele e vê-lo sorrir. Porque eu sempre partilhei, de bom grado, tudo com ele. Sim, tivemos os nossos momentos de provocações e brigas lá pela adolescência, mas cinco minutos depois já estava tudo bem. Sempre fomos unidos, cúmplices. Nunca precisámos de muitas palavras. Sabemos, e isso chega. Mas hoje, faço questão de dizer, que sou muito grata por os nossos caminhos se terem cruzado, por termos crescido juntos, por ele ter sido o meu maior companheiro em todos aqueles anos. É um privilégio ser a maninha do Pedro. Que este ano te traga muitos e muitos sorrisos, maninho. Que a vida te presenteie com lindas surpresas. Em breve estarei aí a abraçar-te forte!

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

200-365

 



Muitas vezes no nosso dia-a-dia, deixamos que as palavras ou atitudes dos outros influenciem o nosso estado de espírito. Quantas vezes, por exemplo, já ouvimos dizer (ou nós mesmos já pronunciamos) a frase "ele/a tira-me do sério!" Ou o contrário "ele/a faz-me bem." Tendemos a responsabilizar os outros pelo que vai cá dentro. Mas, vários professores falam sobre isto, e faz todo o sentido: não é o outro que nos tira do sério: tudo o que sentimos, tudo o que vai cá dentro, é aqui dentro que o sentimos e é aqui dentro que se origina. É como se tivéssemos dentro de nós vários cómodos. Alguns, estão às escuras, não os percebemos, a não ser quando alguma luz os ilumina. A questão é que não é essa luz de fora que os cria: ela apenas mostra que eles estão lá. Aquela raiva, amor, já existe em nós e, com determinados gatilhos, revela-se. 

Cada vez que um pessoa nos diz alguma coisa, essa frase passa por vários filtros da nossa mente. Ouvimos, processamos os sons, entendemos o seu significado, e depois atribuimos-lhe um sentido que vai gerar em nós uma sensação e, possivelmente, uma emoção. O que dá peso a um gatilho é o processamento que lhe damos. A mesma coisa dita por pessoas diferentes, em contextos diferentes, tem peso e conotação completamente diferente para nós. Por exemplo, a simples frase "Olá, querida", se a ouvir de alguém que ama, soa carinhosa, amorosa. Se a ouvir de alguém com quem não tem uma boa relação, pode soar-lhe irónica, provocativa. Se estiver a caminhar na rua e alguma pessoa desconhecida lhe gritar "odeio-te!", isso, provavelmente, vai deixá-lo espantado mas indiferente, neutro. Se, no meio de uma discussão com o seu filho, ele gritar "odeio-te!", isso vai magoá-lo profundamente. Se algum professor que admira lhe disser "que trabalho maravilhoso!", vai sentir uma satisfação muito maior do que se for dito por um grande amigo. Se eu tenho problemas de auto-estima, facilmente coisas que outros dizem, podem ligar holofotes nesse meu problema. Se sou autoconfiante, dificilmente irei sentir-me abalada pelas mesmas coisas. Não são os outros, não são as palavras que nos geram determinadas emoções. Não é o que é dito que dita como nos sentimos, é o que sentimos - os nossos apegos, aversões, medos, identificações - que dita como processamos o que ouvimos. Então, os gatilhos podem funcionar como sinais de alerta: há algo aqui, em mim, no qual eu tenho que trabalhar. Se é cá dentro que tudo acontece, é cá dentro que tudo se pode resolver. E a melhor notícia: só depende de nós. É a velha máxima: "A felicidade é um trabalho interno." (Só é preciso coragem para o abraçar...)

199-365

Entre nós, chamávamos-lhe Mestre. Como se fosse o Obi Wan Kenobi na nossa vida. Não porque nos desse as respostas, mas porque sempre soube fazer as melhores perguntas. Hoje sei que, na cultura indiana, Mestre é "aquele que remove a escuridão" (da ignorância), ou "aquele que inspira a centelha do conhecimento." Então, nada mais certo do que ele ter sido o nosso Mestre. As perguntas que nos lançava, faziam-nos olhar para qualquer ponto escuro, mergulhar nele e procurar a luz que lá existia. Não era as respostas que ele procurava dar-nos, mas a sugestão da reflexão. Foi com ele que percebi a importância de saber fazer as perguntas certas. Foi ele que me deu a conhecer Osho, Khalil Gibran, Fernando Pessoa, José Gomes Ferreira e Sebastião da Gama. Foi ele que me emprestou "Senhor Deus, esta é a Ana." Foi ele que me deu "o livro das minhas histórias" em branco - que estou a preencher, e que vai ser o primeiro a ler, como lhe prometi. Foi meu ombro amigo, foi no seu abraço que encontrei um porto seguro, no silêncio que partilhávamos de forma tão especial. Aquele silêncio que era só nosso, que só nós ouvíamos e compreendíamos, no nosso olhar, sempre cúmplice. Foi professor, amigo, Mestre, pai, padrinho. O bonito da amizade é que, mesmo quando a vida nos leva por caminhos diferentes, ela continua a viver dentro de nós. O meu carinho e admiração por ele são eternos. Sempre, sempre terá um cantinho muito especial no meu coração. E, hoje, no teu dia, quero desejar-te um ano repleto de lindos pôr-do-sol, belas músicas, muito mar, bons livros e filmes e, acima de tudo, muitos abraços e momentos felizes com quem mais amas. Feliz aniversário, meu Mestre pa(i)drinho! Que a vida te sorria sempre, da mesma forma que tu sempre soubeste sorrir-lhe com o teu olhar cheio de doçura. 

198-365

Uma das coisas que eu gosto em dar aulas a crianças, já o disse algumas vezes, é poder relembrar-me sempre como é ver o mundo através dos olhos delas. Hoje, eu e uma funcionária da casa de uns alunos, conversávamos sobre amanhã ser greve de transportes públicos. O meu aluno perguntou-nos o que era greve. Explicámos, e comentámos que era uma forma de chamar a atenção para a reivindicação dos trabalhadores e até de exercer pressão. Ele, com uma expressão confusa, disse "não entendo...não é mais fácil só sentar, conversar e chegar num acordo?" Por vezes, acredito que o mundo seria um lugar bem melhor se todos mantivessemos o nosso olhar de criança.

197-365

 Sexta foi dia de feira aqui. (Uma espécie de mercado a céu aberto.) Comprei uns pêssegos bonitos que arrumei no carrinho de forma que pareciam seguros. No entanto, ao chegar a casa, percebi que um deles tinha ficado ligeiramente amassado. Deixei-o separado para o comer antes de todos os outros que estavam intactos. Algumas horas depois, aquele pedacinho que estava amassado, já tinha escurecido um pouco, como se estivesse mais maduro que o resto do pêssego.

Fiquei a pensar...Talvez sejamos como as frutas: as nossas "batidas", as coisas que nos amachucam, fazem-nos amadurecer mais rápido. (Só é preciso ter atenção para que a batida não nos apodreça...)

196-365

 Quando tocamos piano, muitas vezes temos várias notas em simultâneo, seja numa mão só, seja distribuídas por ambas as mãos. Um dos desafios do piano é, precisamente, conseguir um bom equilíbrio sonoro entre todas as notas que estão a soar ao mesmo tempo. Muitas vezes, é preciso escolher a qual ou quais delas vamos dar mais relevância. No entanto, mesmo aquelas que não queremos destacar tanto, têm de estar primorosamente tocadas, apenas na intensidade que escolhemos tocá-las. Quando queremos fazer esse tipo de trabalho, é preciso ouvir, entre toda a malha sonora que estamos a tocar, uma linha apenas ou, caso se trate de uma questão de equilíbrio entre ambas as mãos, em qual delas queremos que a nossa escuta recaia. Não raras vezes, isso gera-nos uma dificuldade: quando mudamos o nosso foco de atenção da linha principal, por exemplo, para uma secundária, ou mesmo de uma mão para a outra, sentimo-nos perdidos. De repente, começamos a ouvir algo - ou a não ouvir algo - que foge à nossa expectativa, e isso destabiliza-nos. Idêntico ao que acontece quando estabilizamos numa posição de equilíbrio e, depois, fechamos os olhos: perdemos a referência que tínhamos criado e, com isso, perdemos o equilíbrio novamente. Também no piano, quando perdemos a referência sonora que tínhamos, por exemplo em uma das mãos, começam a surgir erros e/ou dúvidas na outra mão. Por outro lado, quando tiramos o nosso foco daquilo que estamos habituados a ouvir para prestar atenção a outra linha, ela surge como nova! De repente, começamos a aperceber-nos de pormenores, nuances que até então tinham-nos escapado. Essa nova forma de ouvir, enriquece a nossa audição e execução. E assim é com a vida: por vezes estamos "presos" a uma forma de "ouvir" o que nos rodeia, e não nos apercebemos de tantos outros "sons" que estão à nossa volta. Assim como mudar o foco na nossa escuta de uma música faz uma nova música surgir e enriquece a nossa experiência, mudar o nosso foco na forma de olhar para o mundo, faz um novo mundo surgir e enriquece e aprofunda a nossa forma de estar no mundo.

Não acredite em mim: experimente! Na próxima vez que ouvir a sua música favorita, procure tirar o foco da melodia principal e prestar atenção a algum outro instrumento, a uma voz secundária, e veja como vai aperceber-se de coisas que em dezenas de vezes em que ouviu essa música nunca se tinha apercebido. Ou, quando fizer aquele mesmo caminho para casa, preste atenção a coisas que nunca viu nesse caminho. Elas estão lá. Veja por si mesmo. 

195-365

 Muitas vezes, ao dar aula de piano, vejo o mesmo movimento nos meus alunos (que o meu professor também via e corrigia em mim): nas passagens mais difíceis, contraem o corpo. O ombro sobe, o pulso e antebraço contraem-se, e os dedos acabam por "prender". O corpo contrai porque a mente se contrai no pensamento "é muito difícil, não vou conseguir". Quando a mente se encolhe na crença de que não é possível, o corpo também o faz. Sempre que vejo isso em algum aluno ou o percebo em mim, digo o mesmo que o meu professor dizia "pensa que é fácil!" É preciso abordar essas passagens com leveza, porque se a mente faz esse movimento de "é difícil", o corpo reage em contração e, com isso, diminuimos a capacidade de concretizar a tarefa a que nos propomos. O corpo encolhe, deixa de atuar no máximo do seu potencial. Mas não basta tentar relaxar o corpo, é preciso partir da mente: se a mente se expande para a possibilidade de conseguir, o corpo reage com abertura. Quanto mais pensamos que uma passagem no piano é difícil, mais difícil se torna passar por ela com êxito. Talvez o mesmo aconteça com todas as coisas da nossa vida: quanto mais encaramos as dificuldades de peito aberto, "como se fossem fáceis", talvez mais fácil seja passar por elas. A abertura na mente, o peito aberto, abre os caminhos do corpo, e isso ajuda-nos a navegar na vida com mais leveza. Fica a dica: "pensa que é fácil."

194-365

Hoje comemora-se o Dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos. Sempre que chega este dia, ecoa imediatamente na minha mente a melodia com os versos "Cecília tu foste eleita entre os servos do Senhor nossa guia protetora que nos leva ao Salvador." Quantas e quantas e quantas vezes cantámos este Hino na escola e arredores? E quantas vezes o maestro professor Henrique Fernandes se desesperou com quem não dava o tempo todo da pausa antes de "nossa guia protetora"? "Comigo! É comigo!", e batia com o lápis na estante. O mesmo professor Henrique Fernandes contava de forma maravilhosa - como tudo o que nos narrava de História da Música - a história dessa jovem nobre romana que se converteu ao cristianismo, numa época em que os cristãos eram perseguidos em Roma. O seu marido e cunhado, impressionados com a sua fé inabalável, convertaram-se também. Louvava a Deus com cantos que impressionavam e convertiam quem a ouvia. Finalmente, foi perseguida e condenada, mas convertia os seus torturadores, e escapava milagrosamente às torturas. Quando, enfim, sentiu que a vida se extinguia, cantou novamente em louvor a Deus. Depois da sua morte, começou a ser adorada como mártir. E, hoje, é no dia de Santa Cecília que nós, músicos, celebramos também o nosso dia. A todos os músicos: um dia feliz, e lembremo-nos sempre do quão poderosa a música é.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

193-365

 Normalmente, quando as crianças estão a aprender uma música nova, aprendem-na primeiro de mãos separadas. Ao aprender muito bem e ganhar confiança no caminho que cada mão tem que fazer, torna-se mais fácil no momento de as juntar. A probabilidade de uma atrapalhar o caminho da outra é menor. No entanto, depois de aprenderem a tocar a música de mãos juntas, se não houver uma manutenção do trabalho de mãos separadas - e isso vale para qualquer um de nós, não apenas as crianças -, ambas as mãos se tornam dependentes uma da outra: apenas sabemos o que a direita faz enquanto tocamos a esquerda, e vice-versa. Se tiramos uma das mãos da equação, a outra fica totalmente perdida. Por isso é tão essencial continuar a trabalhar de mãos separadas, para que cada uma esteja muito segura do que tem que fazer. Além disso, é extremamente importante cuidar de cada nota de cada mão para que a música tenha a melhor interpretação possível. Não adianta ter um excelente fraseado na mão direita, por exemplo, a expressividade requerida, se a mão esquerda não está a fazer o seu papel de acompanhamento com o mesmo grau de perfeccionismo. O meu professor dizia sempre "é preciso que o que é secundário esteja perfeito para que o que é principal possa 'aparecer' em plenitude". Com um acompanhamento descuidado e cheio de imperfeições, nenhuma melodia da mão direita pode soar corretamente.

Isso fez-me refletir em tantas coisas que funcionam da mesma forma na nossa vida. Por um lado, as dependências que criamos sem as questionar ou sequer as perceber, por vezes - tal como acontece com os alunos que nem se apercebem que já só conseguem tocar uma mão em função da outra. "Só funciono de manhã se tomar o meu café", "não passo sem o meu chocolate na TPM", e tantos outros incontáveis "só consigo/faço X se Y" na nossa vida, tantas coisas que vamos "atrelando" a outras. Por outro lado, a falta de cuidado e zelo que temos com certos aspetos da nossa vida e que diminuem a nossa qualidade de vida. Não adianta alimentar-se bem mas entupir-se de pensamentos negativos. Exercitar-se mas só comer comida industrializada. Meditar mas ser impaciente com os outros e não conseguir manter boas relações. Alimentar-se bem mas não cuidar da qualidade do sono. Todos esses pilares da saúde (alimentação, exercício, sono e momentos de silêncio/pausa), tanto os que nos parecem principais como os que nos parecem secundários, são essenciais na nossa vida. Como um todo. Assim como ambas as mãos e todas as notas têm a sua relevância na música. Fica a reflexão...

domingo, 19 de novembro de 2023

192-365

 


Após um exame importante de piano, a minha professora presenteou-me com uma partitura de Debussy. Autografou-a escrevendo algo como "ofereço esta bela obra para a qual não te falta sensibilidade para interpretar." Lembro-me de ficar particularmente intrigada com a palavra "sensibilidade". Na cultura ocidental, somos programados para ver "sensível" como algo frágil, fraco, susceptível. Lembro-me de ter conversado com a minha mãe sobre isso, e de ela me ter explicado que, na verdade, era um elogio à minha forma de olhar para o mundo. Se virmos no dicionário, atribui-se a "sensibilidade" "a faculdade de sentir". E, se pararmos para pensar, nada nos torna mais humanos do que a nossa capacidade de sentir. Nenhum outro ser vivo tem o privilégio de poder emocionar-se com uma música, um pôr-do-sol, uma paisagem. Nenhum outro ser vivo pode usufruir da mesma forma que nós do privilégio da contemplação. Sim, vemos manifestações de afeto em diversos animais, mas nenhum outro pode deixar-se tocar pelo mundo que o rodeia como nós e, da mesma forma, impactar o mundo que nos rodeia através da expressão das nossas emoções. Eu sempre fui sensível porque eu sempre me permiti sentir. Por qualquer razão que seja, sempre existiu em mim essa abertura. Sentir o vento que bate no rosto, o sol que aquece a pele, as cores do céu, das flores, das borboletas, o som do canto dos pássaros, das ondas do mar, das músicas, a emoção que surge com um bom filme ou um bom concerto. (Sou de "lágrima fácil".) E hoje, percebo que ser sensível não é qualquer tipo de fraqueza. Na verdade, talvez seja preciso uma certa coragem para se abrir a sentir. Eu abraço essa característica sem o menor constrangimento porque, hoje, acredito que é uma das melhores partes de mim. É essa sensibilidade que transborda na minha música e nos meus textos. É essa sensibilidade que toca a sensibilidade de quem me ouve ou lê. É essa sensibilidade que me mostra o mundo como eu o vejo - e é um lugar que vale a pena ver, e que eu gostaria que todos pudessem ver! E é nessa sensibilidade que vive a minha maior força: a sensação de pertencimento a algo maior que eu. Nada nos torna mais humanos do que isso.

191-365

 Hoje estava a estudar piano e, numa passagem particularmente rápida e exigente tecnicamente, optei por estudar sem pedal. O piano tem um pedal que permite sustentar ou prolongar o som das notas tocadas. Utilizamos esse pedal como um recurso que nos permite, por exemplo, ligar melhor as notas, ou manter as notas do baixo presentes, ou mesmo criar "ambientes sonoros" diferentes. No entanto, se não for corretamente utilizado, é um recurso que pode gerar bastante "poluição" sonora. Não apenas porque podemos estar a usá-lo em excesso ou de forma em que deixamos que as harmonias se misturem ( e, por isso, se desconfigurem), mas também porque há uma tendência para "tapar" erros ou defeitos com o pedal. Sim, é um facto que o pedal pode disfarçar algumas passagens menos "limpas" (com menor precisão técnica). Por isso é tão importante estudar totalmente sem pedal, prestando atenção a cada nota, cada gesto, cada elo de ligação. Dessa forma, podemos olhar para a passagem despida de artifícios, límpida, transparente e, então, sim, podemos torná-la clara, inequívoca, com qualidade sonora. Só então, o pedal é uma ferramenta que vai acrescentar alguma coisa, e não apenas "retirar" um pouco dos erros, como uma maquilhagem disfarça uma mancha no rosto. Tentar disfarçar os erros, fingir que eles não existem, não os resolve. O que resolve os nossos erros ou defeitos é, antes de mais, reconhecê-los, apoderar-se e apropriar-se deles. Então, sim, podemos fazer alguma coisa em relação a eles. Porque quando os reconhecemos como "nossos", assumimos o poder e a responsabilidade de os transformar. Esse é o caminho do crescimento e da evolução, seja em que área ou aspecto da vida for.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

190-365

Quem vê um campeonato de ginástica e se encanta com a incrível flexibilidade demonstrada pelos ginastas, pode supôr mas nunca imaginar o sofrimento que está por trás da aquisição daquela habilidade. Não sei como funciona hoje em dia, mas quando eu praticava ginástica, havia uma parte do treino que era muito sofrida. Todas enfileiradas, em posição de abertura máxima de pernas, aguardávamos a vez de a treinadora "nos puxar". Íamos assistindo ao sofrimento das colegas, e antecipando o nosso "faltam três... faltam duas..." Chegava a nossa vez, a treinadora aproximava-se e empurrava o nosso tronco ou quadril contra o chão, forçando a abertura. (O mesmo processo acontecia para ombros e costas.) Eram poucos segundos. Pareciam uma eternidade. Prendíamos a respiração e hesitávamos entre a contração que o nosso corpo, instintivamente, queria fazer, e a descontração que era necessária para não criar uma força oposta que dificultava ainda mais a situação e poderia até gerar uma lesão. Sim, muitas vezes chorávamos de dor. Mas sabíamos que era "um mal necessário" para se atingir determinado fim. Para obter mais flexibilidade e ter performances cada vez mais belas e perfeitas, sabíamos que era preciso passar por aquele processo.

Até aos meus 17, 18 anos, mantive uma flexibilidade incomum. Com o passar dos anos, fui deixando de me exercitar, e fui perdendo a flexibilidade. Até que, desde o começo do ano passado, comecei a praticar yoga com muita regularidade. Aos poucos, a flexibilidade foi voltando. Mas, desta vez, sem forçar. No yoga, a evolução acontece na entrega: no respeito pelo corpo, na observação do corpo, na percepção de onde podemos "soltar", de como "soltar" e sempre, sempre, mantendo a respiração consciente, ampla. Essa, para mim, talvez seja a maior diferença: a leveza que a respiração consciente me traz, e que me permite encontrar conforto no desconforto, que também é um passo do yoga. Isso proporciona-nos usufruir do processo, curti-lo, e o processo acontece seguindo um fluxo e não forçando um resultado. O corpo vai cedendo, por si mesmo, vai encontrando formas de se soltar, caminhos para se ampliar. Sim, ainda há uma dose de dor envolvida, mas uma dor que deve ser apenas desconfortável, e nunca insuportável.
Hoje, com 42 anos, posso dizer que há mais de 20 não tinha esta abertura de pernas. E não digo isto para impressionar ninguém, mas para incentivar qualquer que seja o processo ao qual querem dedicar-se: abracem-no, curtam-no, acreditem que é possível, saibam que nada vos impede, e que não é preciso forçar a chegada ao resultado, mas entender como entrar no fluxo de lá chegar.

189-365

 O calor em São Paulo está difícil de suportar. Andar na rua tornou-se uma tarefa física e mentalmente exigente. Custa a respirar, o sol queima a pele. O desgaste é grande. A vontade é parar. Mas é preciso continuar, um passo atrás do outro. Se nos mantivermos absolutamente concentrados no ar a entrar e sair das narinas, é mais fácil manter o controle. A respiração mantém-nos conectados com o corpo, e isso ajuda a apaziguar a mente. Se as nuvens encobrem o sol, sentimos como uma benção. Quando a rua está na sombra, aproveitamos para ganhar ânimo. Se corre uma brisa fresca, sorrimos. Sabemos que, em algum momento do dia, o calor vai dar uma trégua, e isso, só por si, é um conforto.

Que possamos enfrentar as dificuldades da vida com a mesma resiliência. Um passo atrás do outro, uma inspiração e exalação atrás da outra, percebendo e aproveitando as sombras e brisas que surgem no caminho, e sabendo que, em algum momento, tudo vai passar.

188-365

Quando era pequena, na minha turma da escola havia outras Joanas. Para diferenciar das outras, passei a ser a Joana Gabriela. Não era um nome que me agradasse muito. Não sei porquê, mas até certa idade, embirrava com o nome "Gabriela". Quando entrei para a ginástica, passei a ser "Joana Alves". Então, dos 6 aos 14 anos, eu era Joana Gabriela na escola e Joana Alves na ginástica. Quando entrei para a Faculdade de Direito, já tinha feito as pazes com o meu "Gabriela" e quando entrei para a equipa de futsal feminino, e escolhi "Gabi" para ter nas costas da camisola. A partir daí, durante aqueles 4 anos de Direito, toda a gente me chamava Gabi. Algumas pessoas chamam-me, carinhosamente, Joaninha. Na Escola Superior de Música de Lisboa era simplesmente Joana. Quando casei, em algumas ocasiões passei a ser chamada "Joana Rezende", e quando me mudei para o Brasil, algumas pessoas aqui começaram a chamar-me "Jô". Para o meu irmão, sempre fui a "mana" ou a "maninha". Para os meus pais sou "filhota", e para o Mateus, tornei-me a "mamãe".

Todos nós vestimos muitas "peles" na interação com os outros. Talvez cada um desses nomes pelos quais sou chamada, se dirija a recantos específicos de mim mesma ou corresponda a certos espectros meus. Mas há alguma coisa que permeia todos os nomes, uma Luz que ilumina todos esses cantos, que percorre e dá vida a cada uma dessas camadas. Cada uma delas é tecida pelo mesmo fio. Aquele pedacinho inviolável, intocável, eterno que responde à pergunta mais essencial de todas: quem sou eu? Essa é a pergunta mais premente, a que nos faz atravessar todas as camadas e vislumbrar o que está para além delas. E essa deve ser a nossa eterna busca.

187-365

 





Às vezes, ao caminhar pela cidade, sou surpreendida por detalhes absolutamente perfeitos da Natureza. Contemplo e acolho cada um como se se tratasse de um presente especial. Se tenho alguns minutos, deleito-me naquele momento. Eu e aquela flor nunca mais vamos ter a mesma interação. Mesmo que eu passe no mesmo lugar no dia seguinte, já não é a mesma flor, não é a mesma luz, o mesmo vento, não é o mesmo momento. Talvez nem eu seja a mesma. Em dias diferentes, o meu olhar é diferente. Sempre novo. As sensações são outras. A Natureza relembra-nos que tudo é cíclico, tudo é perene e, ao mesmo tempo, tudo é único, irrepetível. A Natureza relembra-nos que tudo é perfeito exatamente como é, tudo segue uma Ordem que escapa ao nosso entendimento. Testemunhar a beleza única desta flor, faz-me comungar com ela dessa perfeição. Contemplo-a e penso "como poderia esta flor ser mais bela e perfeita do que já é?" Não imagino nada, nem uma pequena pinta que pudesse torná-la mais perfeita. Sinto como se o Divino me sorrisse através dela, como se, carinhosamente, me dissesse "estou aqui, nunca te esqueças disso." E perante este milagre, daquela flor incrivelmente perfeita, a balançar levemente com o vento, eu sei e sinto-O: ele está ali, nela, aqui, em mim, e no espaço entre nós. E, então, eu sorrio de volta. "Estás aqui, nunca me esqueço de me relembrar disso."

186-365

 "Estica a ponta do pé", "joelhos esticados", "barriga para dentro", "atenção aos dedos da mão", "esse dó um pouco mais, e o ré seguinte um pouco menos", "sincroniza melhor as notas do acorde", "rigor no andamento". Desde pequena, envolvi-me em atividades que primam por uma busca minuciosa da perfeição. Na ginástica artística, qualquer pequeno desequilíbrio, desalinhamento no corpo, imperfeição na posição de pés, pernas ou mãos, prejudica a beleza estética dos movimentos (e significa décimos a menos na nota final). Na música, há uma constante busca por moldar o som da melhor forma possível. Todo e qualquer detalhe faz diferença na forma como se fraseia. Há passagens em que cada nota é milimetricamente planeada para que, no resultado final, todas se encaixem de forma a que consigamos atingir a expressão mais verdadeira possível. Em ambas as atividades, há uma enorme exigência de esforço, empenho, dedicação. Há um "querer fazer" sempre mais, sempre melhor. É preciso tempo para aprender os movimentos, para os entender, paciência para os dominar, para se apropriar deles, para que sejam "nossos", e investigação para optimizá-los o mais possível. É essencial ter uma intenção firme, uma construção mental de onde se quer chegar. É preciso acreditar que é possível chegar lá. Depois de todo o trabalho feito, de cada gesto estruturado, organizado, depois de perseverantes e contínuas repetições, é necessário confiar no trabalho feito, e entregá-lo, entregando-se ao momento. A disciplina e o trabalho têm que ser feitos com tal minúcia que nos permitem esquecê-los, ir além da técnica e chegar nas sensações. É preciso trabalhar até que o trabalho se torne "invisível". Depois do trabalho feito, é preciso desprender-se desse labor e abrir-se à possibilidade de tudo o que pode acontecer. É aí que a magia acontece. Quando já não há um querer fazer, mas apenas um Ser. Quando se vai além do gesto, porque ele está em nós, além da técnica porque a executamos sem a perceber, e podemos, camada a camada, transbordar naquele momento. Mergulhamos nele, ele atravessa-nos e preenche-nos ao mesmo tempo que é preenchido por nós. E depois? Começamos tudo outra vez, com o mesmo empenho, zelo e desprendimento. Nunca sabemos onde o caminho nos vai levar.

185-365




Quando não nos exercitamos há um tempo ou quando aumentamos a intensidade dos exercícios que fazemos, sentimos o corpo dolorido. Não raras vezes, apercebemo-nos de músculos que, até então, estavam desconhecidos para nós. A nossa atenção é direcionada para aqueles centímetros quadrados muito específicos da perna, por exemplo. E pensamos "Esse músculo sempre esteve aqui? Eu já o utilizei antes?" E, assim, ganhamos mais consciência corporal. Apropriamo-nos do nosso corpo. Acordamo-lo, aos poucos, utilizando cada vez mais o seu potencial. Por que não fazer o mesmo em relação às nossas emoções, crenças, medos? Olhar para dentro, exercitar tudo o que vai cá dentro, pode ser bem mais doloroso do que mexer o corpo. Assim como nos apercebemos dos músculos até então desconhecidos, mergulhando dentro de nós, podemos descobrir emoções que teimamos em manter escondidas. Olhá-las, pode provocar desconforto, até fazer-nos (re)viver algumas dores, mas é a única forma de realmente lidar com elas. Olhar, com curiosidade, abertura, entrega, é a única forma de as compreendermos, pois "é na dor que está a cura da dor." (Rumi) (Ou, em outras palavras, "a Verdade te libertará.")

184-365

 


Ao estudar yoga, percebo conexões inegáveis com a música. Desde logo na definição de yoga que Patanjali nos traz no começo do seu tratado Yogasūtra: "o Yoga é acessar a mente coração através da estabilização dos movimentos
da mente." (Tradução do Professor Caio Corrêa) Ou seja, mantendo uma qualidade da mente de completa entrega ao momento presente, atingimos um estado de yoga em que acessamos aquele lugarzinho especial de nós mesmos que identificamos como a nossa essência - e, comumente, se intui morar no nosso coração. Em raras ocasiões pude sentir-me tão perto desta definição como sentada a tocar piano. Quando superamos as questões técnicas e a mente fica tão focada naquele momento, conseguimos entregar-nos completamente a cada nota tocada, de tal forma que as notas deixam de existir: passamos a Ser cada nota tocada, e cada nota tocada é um pouco de nós. Estamos em cada uma delas, e cada uma delas toca-nos na nossa mais profunda essência. O que será isso se não samadhi? - tornar-se idêntico à sua essência. E esses momentos acontecem após um caminho. O caminho do yoga. Um caminho de muita disciplina, empenho, esforço continuado e persistente, mas feito com cuidado, zelo. Não pode ser um estudo automático, distraído, mas um estudo consciente, atento a cada som, a cada gesto, com devoção e amorosidade tentando perceber a cada momento qual a melhor solução possível para aquela situação. Aprender os gestos, as técnicas, para depois poder deixar a mente tão focada em um ponto só que tudo isso se desvanece. Não estudamos por obrigação, mas por devoção à Música, à Beleza, a algo maior que nós mesmos e que conseguimos acessar ali. Teremos obstáculos: a mente dispersa, outras vezes está mais letárgica, preguiçosa e outras entra em "piloto automático", num estudo incipiente e mecânico, sem conexão. Por vezes, a memória de um erro anterior, precipita um novo erro. Teremos medo, hesitações, dúvidas, desânimo e, outras vezes, excesso de confiança. Depois do trabalho feito, do empenho, é essencial não se prender ao desejo de um resultado final e nem sequer a qualquer resultado final que se obtenha, porque a única coisa que está sobre o nosso controle é a nossa ação, mas não o resultado dela. Entregar-se! Um momento após o outro. Pular de braços abertos no escuro: não há o que temer! Quanto mais mergulhamos, seja qual for o resultado, mais poderemos acessar quem realmente somos, em essência, mesmo que em breves vislumbres. Aos poucos, vamos cada vez mais reconhecendo-nos como nós próprios. E assim seguimos: no caminho. 

183-365

Com o passar do tempo, percebemos cada vez mais, o valor do tempo que passa. Queremos aproveitá-lo o melhor possível. Não queremos desperdiçá-lo com coisas que achamos que não valem a pena. Por isso, cada vez que escolho ver um filme ou uma série, fico realmente frustrada quando chego ao fim e penso "não acredito que perdi o meu tempo a ver isto..." Felizmente, não foi o caso ontem ao ver o filme "um lindo dia na vizinhança" (netflix), com o Tom Hanks. Só por si, ver o Tom Hanks a atuar já é um enorme prazer e privilégio. Neste filme, mais uma vez, ele esbanja talento e carisma.

O filme é uma história biográfica do apresentador de televisão Fred Rogers, famoso nos Estados Unidos da América pelos seus programas para o público infanto-juvenil. O jornalista Lloyd Vogel é escolhido para escrever o perfil do apresentador para a revista em que trabalha. Ao conhecer o apresentador, a sua vida começa a mudar e, ao longo da história, os dois constroem uma bonita amizade. Rogers é um homem encantador, gentil, e de uma sabedoria inspiradora. Uma das mensagens mais bonitas que nos transmite é que não temos de evitar ou esconder as emoções, mas sim aprender a reconhecê-las e a encontrar ferramentas que nos ajudem a lidar com elas. Um dos exemplos de formas de lidar com a raiva que ele dá? "Apertar todas as teclas graves do piano ao mesmo tempo" - essa, eu conheci muito bem durante anos!
O filme tem uma arte muito bonita, em que mistura imagens dos programas de Rogers com imagens de maquetes dos cenários onde a história se desenrola. Tudo muito sensível, singelo. Há um minuto do filme, em particular, uma sequência de 60 segundos, que já faria todo o filme valer a pena. Tenho a certeza que toda a gente que vê este filme, mergulha naquele "1 minuto" junto com os personagens e emociona-se tanto quanto eles.
Rogers é-nos apresentado como uma pessoa absolutamente incrível, admirável. Gentil, calmo, compreensivo, altruisticamente generoso, com um senso muito grande de servir aos outros, de saber ouvir o outro.. Em alguns momentos, parece... perfeito, um santo. Mas o detalhe do final do filme, mostra-nos que ele, apesar de ser aquela pessoa encantadora e tranquila é tão humano como todos nós. Talvez tenha, apenas, mergulhado e abraçado a sua natureza humana de uma forma tão profunda que aprendeu a navegar nela com serenidade, apesar de qualquer intempérie. Foi esse o  caminho que inspirou o jornalista Vogel e, com certeza, todos os que assistirem o filme.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

182-365

 


Caramelos de nata. Compravamo-los na cantina da escola a 5 escudos cada. Vinham embrulhados num papel castanho claro. Não tinham um formato muito bem definido (muitas vezes pareciam amassados em alguns lugares). Colavam-se aos dentes. Era difícil comer só um. Eram viciantes.
Ontem comi um caramelo de nata. Sem formato bem definido (parecia amassado em alguns lugares). Colava-se aos dentes. Não consegui comer só um. Quando acabou, comi o outro que tinha na mala. Se fechasse os olhos a comer aquele caramelo de nata - o de ontem - podia imaginar aquela espécie de jardim suspenso que ficava sobre as nossas cabeças no caminho para a cantina da escola e que ficava repleto de abelhas na primavera, podia ver a parte telhada que ficava próxima, do lado esquerdo de quem ia, ouvir os meus amigos a brincar, naquele ruído difuso de gritos, risos e conversas. Podia imaginar que a Inês me tinha dado aquele caramelo, e antecipar o som da campainha que nos mandava de volta para a sala de aula. Na verdade, não me lembro se a Inês gostava de caramelos de nata, ou se os partilhavamos uma com a outra mas, de alguma forma, a memória daqueles caramelos de nata a 5 escudos cada, remete-me para a minha amiga Inês. Talvez porque a nossa amizade já vem desde ali, bem antes de sermos eternas parceiras no piano, e muito, muito antes de sermos a mãe do Mateus e a mãe da Beatriz. Talvez porque sempre a recordo sorridente e generosa - certamente partilhar caramelos de nata é uma coisa que ela faria com um sorriso! A verdade é que a nossa memória é cheia de lacunas que vamos preenchendo como podemos. Onde falta alguma coisa na história, acrescentamos algo que faça sentido para alguma parte de nós. Às vezes, temos por certa uma lembrança que já nem corresponde à verdade do que aconteceu. Voltando à minha amiga Inês, um dia, dizia-me ela que tinha encontrado não me recordo onde - poderia preencher esta lacuna com alguma coisa engenhosa, mas vou deixar assim mesmo, vago, embora tenha a ideia que esse encontro foi num avião - uma antiga colega de escola nossa. Não era da nossa turma, mas a escola era pequena, acabávamos por nos conhecer um pouco uns aos outros. Quando me falou desse encontro, a Inês acrescentou que tinha sempre uma sensação estranha, que a incomodava, em relação a essa antiga colega. Eu disse "ela batia-nos e ameaçava-nos naquele cantinho atrás da [sala da professora] Irene." A minha lembrança, muito fiel ou não à realidade, deu à Inês a sensação de "aha!" " Não tenho a menor lembrança disso, mas faz todo o sentido porque me sinto incomodada quando me recordo dela!", comentou ela. Bom, as minhas memórias não são lá muito de fiar...Recordo-me, daquela forma difusa, de estarmos naquele vão que ficava entre a parede da sala e o muro da escola, e de me sentir ameaçada. De alguma forma, a Inês partilha do meu sentimento, o que me faz crer que há um fundo de verdade na minha lembrança - e no desconforto que ela sente. Quanto aos caramelos de nata, fico feliz que a minha memória os associe - vá-se lá saber por quê - à minha amiga Inês. A Inês sempre espalha alegria, acolhimento e carinho por onde passa. É uma das pessoas que mais admiro, não só pelas suas qualidades, mas pela sua incrível habilidade de sempre navegar pela vida com leveza no peito e um sorriso no rosto. Se há alguém que merece ser associada a uma coisa tão doce e reconfortante como um caramelo de nata, é a Inês! (E, que tal, se na próxima vez que eu for a Lisboa, comermos caramelos de nata com os miúdos?)

181-365

 


Quando éramos crianças/adolescentes, todos os anos passávamos 15 dias do verão no Algarve (praia). Uma das coisas que eu mais gostava era do regresso a Lisboa. A cidade tinha outra cor. Embora pouco ou nada tivesse mudado na cidade em 15 dias, eu observava atentamente, como se jogasse o "jogo das diferenças" e prestava atenção a cada detalhe, a cada pequena mudança, como se visse a cidade pela primeira vez. Por isso, em cada regresso a casa, eu via outra cidade. Eram os mesmos caminhos, os mesmos edifícios, mas a cidade era outra para mim. Quando chegava a casa, a primeira coisa que fazia era sentar-me ao piano. Era uma experiência única. Duas semanas sem tocar, tornavam a sensação do toque diferente. Claro, tecnicamente, poderia ter os seus desafios, por estar "fora de forma", mas também havia um frescor, uma maior percepção de todas as sensações e, principalmente, do som. Algumas músicas que pareciam estagnadas antes das férias, depois daquelas semanas de ausência, ganhavam um nova compreensão, uma nova vida. "É necessário aprender e esquecer várias vezes uma obra para começar a entendê-la." (Alicia de Larrocha) Por vezes, ao estudar uma obra, entramos numa prática repetitiva, automática, cristalizada. Para que a interpretação tenha vida e seja autêntica, é preciso estar sempre atento a ela, a novas possibilidades que se nos apresentam, e não ficar preso àquelas que foram a nossa opção anteriormente.
Seja qual for a prática - música, yoga, escrever, desenhar, cozinhar,  conversar - é necessário uma entrega profunda, uma interação completa para que a experiência seja vivenciada no Presente, com plenitude. (E isto, já estava lá há milhares de anos atrás no Yogasūtra de Patanjali...)
É preciso tocar sempre como se fosse a primeira (e a última) vez.

180-365

 


Quando comecei a ler mais sobre yoga, a aprofundar-me um pouco nesse estudo, o que mais me cativou foi perceber que o yoga sempre esteve na minha vida. Quanto mais eu aprendo sobre yoga, mais o reconheço em mim, e mais me reconheço nele.

Já era yoga quando, aos 6 anos de idade, eu ficava totalmente concentrada nos exercícios de ginástica. Já era yoga quando, na ginástica, nada mais existia à minha volta e, totalmente envolvida naquele momento, sentia uma liberdade que não sabia explicar. Já era yoga quando, desde a adolescência, me questionava "De onde vim? Para onde vou? Quem sou eu?" Já era yoga quando percebi a importância crucial da disciplina para atingir os objetivos. E também já era yoga quando entendia que, apesar de toda a disciplina e dedicação, no momento da apresentação de ginástica ou música, é preciso entrega - aceitar que não temos controle sobre tudo. Já era yoga quando percebi que, sentada ao piano, conseguia chegar mais perto da minha essência do que em qualquer outra situação. Já era yoga quando sentia um arrepio percorrer-me as costas a ouvir certas músicas. Já era yoga quando eu sentia que não é por acaso que a Natureza é tão perfeita, que algo maior que nós mantém o Universo inteiro no lugar. Já era yoga quando ficava imersa na contemplação do mar, do pôr-do-sol e sentia que era uma Parte do Todo. Já era yoga quando, depois de me mudar para o Brasil, tive que procurar em mim mesma, quem eu era sem todos os rótulos que me habituei a vestir durante 30 anos. Já era yoga quando o meu filho pequeno me relembrava a importância da Presença em cada momento. Já era yoga quando percebia os padrões da minha vida e dos que me são mais próximos. Já era yoga quando percebi que a vida é mais do que comer, dormir e sobreviver. Já era yoga...Cada vez é mais yoga.

179-365



A Beleza mora nos detalhes. E os detalhes escondem-se bem diante dos nossos olhos. Na lua a nascer lá no alto, em pleno dia, na flor que nasce por entre as folhas, nas pétalas de flor que cobrem o chão, no balançar das folhas com o vento, na nuvem que se passeia no céu, no canto do pássaro que vence o ruído da cidade, nas cores com que o nascer e o pôr-do-sol nos presenteiam.

A Beleza mora nos detalhes. E os detalhes estão diante dos nossos olhos. Basta treinar o olhar para os perceber.

178-365

 


Todos conhecemos o lugar-comum "temos que agradecer as coisas boas da nossa vida" mas, embora seja relativamente fácil fazer uma lista extensa com itens de todo o tipo, e refletir sobre a importância de cada um, nem sempre é fácil SENTIR essa gratidão. Perdemo-nos na meia dúzia de itens que (achamos que) faltam na nossa extensa lista, e é mais fácil sentir a falta (que achamos) que eles nos fazem do que a presença dos demais. Sim, sei que tenho que agradecer por ter saúde e comida no prato, mas aquela casa/férias/filho/carro/emprego/relação/X no banco... E a verdade é que há tantas coisas simples pelas quais deveríamos sentir uma profunda gratidão mas que só aprendemos a valorizar quando nos falham. Temo-las por banais, por garantidas. Nem as percebemos na nossa vida.
Hoje eu senti uma profunda e autêntica gratidão por poder atravessar uma rua com facilidade. Uma coisa que eu faço todos os dias, inúmeras vezes, de forma completamente automática. Por mais que já tenha pensado que atravessar uma rua é um desafio para algumas pessoas, nunca o tinha sentido na pele. Eu aguardava que o sinal ficasse verde para atravessar, enquanto observava um senhor do outro lado a fazer o mesmo. Com a diferença que ele tinha uma bengala na mão e estava visivelmente ansioso com os carros que passavam à sua frente. Eu atravessei, aproximei-me dele e perguntei se queria ajuda para atravessar. Ele agradeceu, explicou que só via vultos e não conseguia perceber os carros ao longe, apenas quando ja estavam ali próximo. O semáforo não era sonoro e ele não
conseguia perceber quando era seguro atravessar. Segurou no meu braço, e guiei-o até ao outro lado. "Deus a abençoe", disse-me, enquanto seguia o seu caminho procurando com a bengala o caminho desenhado em relevo na calçada. Eu voltei a atravessar a estrada para seguir o meu. Dei mais meia dúzia de passos e esperei novamente para atravessar outra estrada. Mas desta vez, como nunca na vida, com uma enorme sensação de gratidão no peito. Como se estivesse a ver cores e uma luz nova, grata por ter o privilégio de observar de forma tão clara tudo o que me rodeia, grata por ter o privilégio de me locomover com autonomia e facilidade. Não foi um pensamento, conclusão ou reflexão mas uma sensação inequívoca no corpo, que me preencheu o peito e me deixou os olhos marejados. A gratidão não é uma pensamento, mas um sentimento. Cultive-o.

177-365

 


Em São Paulo, há várias ruas que homenageiam datas importantes da História do Brasil, personalidades que se destacaram em várias áreas mas, além dessas ruas, há

vários bairros que têm nomes de ruas relacionados entre si. Há um bairro em que todas as ruas têm nomes de países da Europa (sim, há uma Praça Portugal), outro em que todas as ruas têm nomes de países da América, outro em que todas as ruas têm nomes relacionados com a flora e fauna do Brasil. Mas, para mim, que sou pianista, é na esquina onde se lê "Rua Schubert" para a esquerda e "Rua Chopin" para a direita que há algo de quase poético. Dois compositores românticos, ícones da música para piano do século XIX, lado a lado. Sempre que passo ali, sinto que estou a cumprimentar dois velhos amigos que encontrei ali por acaso. (Imaginem as conversas que os dois poderiam ter naquela esquina, e a boa música que se ouviria se ali existisse um piano...)

176-365

A SIC está de parabéns. Custa a crer que já passaram 31 anos! O meu pai tinha razão quando me dizia que "isto passa tudo a correr, num piscar de olhos." Lembro-me bem da ansiedade para a abertura do canal novo. Naquela época, por incrível que pareça, tínhamos apenas dois canais na televisão. A novidade de um canal diferente era entusiasmante. Lembro-me muito bem de concursos que a SIC promoveu antes da inauguração oficial do canal que envolviam telefonar - e gastar dinheiro nisso - e ganhar prémios relacionados com o Super Mario Bros. Consegui convencer a minha mãe a telefonar uma vez, e "só mais uma", e "prometo que só mais uma", e não ganhei nada. Do começo das transmissões, não me lembro bem. Nem dos programas, nem das caras. Do que mais me recordo é dos programas "populuchos" de domingo. Aos poucos, foram surgindo programas icónicos. Quem não se lembra da "Chuva de Estrelas" com a lindíssima Catarina Furtado, ou da divertida e inteligente "Noite da Má Língua"? Foi na SIC que o meu irmão acompanhou fervorosamente o Dragon Ball Z e que, anos mais tarde, acompanhamos juntos a série Alias (A Vingadora), sem perder um episódio! Era na SIC que ouvíamos o "rrrrripa na rapaqueca" nos jogos de futebol comentados pelo Jorge Perestrelo. Na SIC, a dramaturgia portuguesa foi atingindo novos patamares de qualidade.

Agora, a SIC Internacional é o único canal falado em português de Portugal ao qual tenho acesso. Adoro matar saudades das paisagens e das caras conhecidas.
Isto passa tudo a correr... Daqui a 31 anos parece tanto tempo. Mal dá para imaginar. Mas, num piscar de olhos, lá estaremos, se Deus quiser. Parabéns à SIC e que possamos continuar a comemorar juntos.

175-365

 Na música, há um fenómeno ao qual ninguém está imune: quando tocamos mais forte ou em crescendo sonoro, temos tendência para tocar mais rápido, e quando tocamos mais piano ou num decrescendo sonoro, temos tendência para tocar mais devagar. Isso obriga-nos, em determinadas partes das músicas, a "enganar" a nossa mente: em forte, temos que pensar "mais devagar" e em piano temos que pensar em "manter o movimento". Por vezes, isso gera-nos uma sensação de que estamos a atrasar ou a apressar. No entanto, se ouvirmos uma gravação, percebemos que o que aconteceu é que conseguimos, através desse artifício e dessa sensação errónea, deixar o andamento certo.

Por vezes, é necessário enganar a mente. A mente é naturalmente preguiçosa, tendencialmente negativista - herança dos nossos ancestrais que, a qualquer momento, poderiam ter um encontro indesejável com um predador - e caprichosamente difícil de controlar. Então, muitas vezes, a melhor maneira de lidar com ela é enganando-a. É mais fácil convencê-la a fazer 30 abdominais se forem 10 + 10 + 10. Assusta-se menos com 10 de cada vez do que com 30 de uma vez. É mais fácil uma passada atrás da outra do que uma maratona. É mais fácil escrever uma linha após a outra do que um livro inteiro. É mais fácil mudar um hábito de cada vez do que querer mudar a vida inteira de uma só vez. É mais fácil um dia de cada vez do que "nunca mais" ou "para sempre". Como diz Marisa Peer "A mente vai acreditar em tudo o que lhe disser, então, por que não contar-lhe uma mentira (que o sirva) melhor?" 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

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Às vezes tenho a nítida sensação que o nosso cão entende tudo o que lhe dizemos. Um dia destes, estava sentada na ponta da cadeira e ele colocou as patas da frente apoiadas atrás de mim. Comentei "esta semana o cão da minha aluna fez isto também, mas como é pequeno, a seguir pulou para a cadeira e ficou sentado atrás de mim." Três segundos depois, o Théo, com todo o seu tamanho, conseguiu a proeza de pular e partilhar a cadeira comigo. À noite, basta dizer "vai lá com a mãe" que, rapidamente, ele aconchega-se no lugar de sempre na cama para dormir perto das minhas pernas. Às vezes, até o meu pensamento ele parece adivinhar. Quando estou na sala e me levanto para ir estudar piano ele, rapidamente, adianta-se à minha frente e fica a olhar para a porta do quarto onde está o piano à minha espera. Se me levanto para fazer qualquer outra coisa, ele nem se dá ao trabalho de se mexer.
Adoro a forma como mexe os bigodes para perceber se vale a pena ir até à cozinha, ou a forma expressiva como posiciona as orelhas consoante o que está a sentir.
O Théo não fala mas expressa-se muito bem e, à maneira dele, enche-nos de amor e carinho todos os dias.
Hoje é Dia Internacional dos Animais, mas aqui em casa, todos os dias é o dia dele, o eterno "bebé" da família. 

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

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 Há tempo atrás, conversava com uma aluna (adulta) minha sobre o quanto as pessoas estão ocupadas em partilhar a vida em retalhos: a mostrar apenas as partes bonitas e agradáveis (o prato de comida no restaurante da moda, a paisagem na viagem, os filhos e marido/esposa perfeitos, o carro, a roupa, etc), e ignoram tudo o resto que faz parte da vida de qualquer pessoa (problemas, dificuldades, sofrimentos, desentendimentos, dúvidas,  rugas, gorduras-extra no corpo). Conversamos sobre o quanto isso é nocivo para todos nós. Porque no final, todos nos sentimos sozinhos nas dificuldades e até no processo de envelhecimento. Já que ninguém tem a coragem de dizer que dói mesmo, que correu mal, que está difícil, que há flacidez, cabelos brancos, rugas, que não sabe, quando é em mim que surgem esses sentimentos, parece que é só em mim. Nesta era das redes sociais, vivemos cada vez mais um mundo de aparências. Todos querem mostrar os seus paraísos particulares, sem mostrar as sombras, os lugares escuros. Todos receiam mostrar-se inteiros, como se assumir as dificuldades fosse uma fraqueza. Uma vez que ninguém fala das suas sombras, somos levados a crer que estamos sozinhos nesse lugar onde nem sempre a luz brilha. Mas a vida é dual e cíclica. Assim como todos temos qualidades e defeitos, assim como há dia e noite, também temos todo o tipo de sentimentos a coabitar dentro de nós. Então hoje, quero aproveitar para escrever aqui com todas as letras: não tenha medo nem vergonha das suas sombras. Não está sozinho. Às vezes não sabemos o que fazer, que caminho seguir, às vezes dói mesmo. Nem sempre as coisas correm como gostaríamos, nem sempre nos sentimos capazes ou bonitos o suficiente, as saudades apertam o peito, todos sentimos medo, o filho/a não é sempre perfeito/a, nem o marido/esposa, e nem nós. Nem sempre estou de bom humor, nem sempre tenho motivação para encarar a vida de frente, sinto medo, inseguranças, tenho dúvidas, começo coisas que não termino, procrastino, falhei com várias pessoas assim como muitos falharam comigo. Às vezes o dinheiro falta, a paciência esgota-se e o desânimo sobra. Mas, no auge dos meus 42 anos, percebo cada vez mais que todo esse espectro de emoções, incluindo medo, raiva, inveja, faz parte de se ser humano. A questão não é deixar de sentir essas coisas, reprimi-las ou fingir que elas não existem: é aprender a lidar com elas. O que quer que seja que ajude a processar as emoções e a criar uma pausa entre a sensação e a nossa resposta. Reconhecer a emoção que nos percorre o corpo. Acolhê-la. Perceber a sua origem. E depois, decidir conscientemente o que fazer com ela. A questão não é deixar de sentir as coisas, mas deixar de ser escravo dessas sensações. Procurar e desenvolver as ferramentas que melhor funcionarem para nós: terapia, hipnose, respiração consciente, exercício físico, yoga, meditação, escrita livre, exposição ao frio, medicação, medicinas ancestrais dos povos da floresta, corrida, contemplação da natureza, música, dança, entre tantas outras possíveis. Não tenha medo, não tenha vergonha. Não está sozinho. Aí nesse lugar onde está hoje, de alguma forma, todos já estivemos ou vamos estar. Só ninguém quer falar sobre isso, porque isso foge dos padrões do bonito, instagramável, bem sucedido. Mas a vida é tudo isto. A colcha de retalhos inteira, com todas as suas formas, cores e remendos. Tudo está em constante mudança. A sua luta e sua dor hoje, será a sua conquista e a sua força amanhã. Não está sozinho. Coragem. E se precisar de ajuda, peça. Fale. Não está sozinho. Nunca estamos.

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 Nos últimos meses, uma importante avenida de São Paulo está em obras. Nas últimas semanas, a situação dessas obras ficou ainda mais caótica. Para mim, tornou-se absolutamente inviável utilizar aquele percurso em alguns dias da semana. O tempo que demoro, na melhor das hipóteses, é o dobro. Isso obrigou-me a procurar caminhos alternativos, a descobrir novas formas de percorrer os mesmos trajetos. Nesse processo, percebi que a avenida X, está logo ali conectada com a Y através da rua Z! Aquela velha sensação de quem não conhece a cidade, e percebe que, afinal, aqueles dois pontos não eram tão distantes, nós é que só sabíamos olhar para eles através de uma única perspectiva, e transitar entre um e o outro através de uma única possibilidade. Eu andava a dar uma "volta ao bilhar grande" para fazer um caminho que tinha uma opção bem mais direta. Nem sempre é mais rápido, em função de trânsito e linhas de autocarro (ônibus), mas quando as coisas correm bem, é um trajeto bem mais eficaz. Aquela história de "há males que vêm por bem"... Se não tivesse tido este imprevisto, não teria procurado uma solução diferente. Quantas vezes agimos, reagimos, pensamos da mesma forma, sem refletir por um segundo se aquela será a melhor forma? Sem sequer ponderar se existem outras formas? Quantas vezes ficamos acomodados a uma única forma de ser, fazer, existir, sem questionar se poderíamos beneficiar mais ou ser mais felizes com outra? Quantas vezes ficamos presos a um caminho só porque é o que nos é familiar? "Por medo do desconhecido, as pessoas preferem sofrer com o que é familiar” (Thich Nhat Hanh). A verdade é que, na maioria das vezes, apenas questionamos e procuramos quando surge um obstáculo, uma dificuldade ou mesmo quando caímos. Na dor da queda, por vezes, ousamos mudar. Mas para quê esperar um percalço, uma dor, para arriscar algo novo, para... quem sabe, melhorar, crescer? Não é porque fizemos o mesmo caminho desde sempre que estamos condenados a fazê-lo eternamente.

domingo, 10 de setembro de 2023

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Os ipês brancos estão a florir! Aqui perto de casa sei onde estão seis. Por esta altura do ano, depois da florada do roxo e do amarelo, começo a ficar atenta, até porque a "janela" para ver o branco florido é muito pequena (as flores duram apenas 2 ou 3 dias). Ontem, um deles já estava bonito. Comentei com uma pessoa amiga que estava por ali "Olha como o ipê branco está bonito hoje." "Nossa!.. Está mesmo!", respondeu ela, e acrescentou "E nunca tinha reparado que tem um ipê branco aqui! Costumo ver mais os rosa e amarelo pela cidade." Sim, os brancos são mais raros, e de uma beleza ímpar. Eu já sei que aquele ipê em particular está ali mas, cada vez que passo por ele, sou surpreendida e arrebatada pela sua beleza. Sorrio imediatamente. Como uma tonta na rua, sorrio. Permito-me parar um pouco. Usufruir.
Talvez aquela senhora hoje tenha reparado que o ipê está ainda mais bonito do que ontem. Talvez alguém que me leia e passe por um na rua repare também, aprecie, contemple. É uma pena que tanta beleza passe despercebida a tanta gente. Eu partilho estes momentos porque a beleza deles me toca, preenche-me, e transborda, depois, nas palavras. Mas, se as minhas palavras levarem alguém a contemplar uma flor, uma árvore, um pôr-do-sol, a lua cheia, o mar, o canto do pássaro, fico duplamente feliz. Contemplar é um privilégio (muitas vezes negligenciado) e uma das formas mais fáceis de nos sentirmos gratos por fazer parte deste mundo. A Beleza dá-nos, simultaneamente, um sentimento de pertencimento, e abre, nessa contemplação, um espaço em nós de observação interna. Porque ela nos traz para o Presente, que é o único "lugar" em que as coisas especiais e relevantes acontecem. Abrimo-nos para o mundo, e um novo mundo abre-se em nós. A Beleza tem o poder de nos proporcionar um (re)encontro connosco mesmos. A Beleza cura.