quinta-feira, 30 de novembro de 2023

200-365

 



Muitas vezes no nosso dia-a-dia, deixamos que as palavras ou atitudes dos outros influenciem o nosso estado de espírito. Quantas vezes, por exemplo, já ouvimos dizer (ou nós mesmos já pronunciamos) a frase "ele/a tira-me do sério!" Ou o contrário "ele/a faz-me bem." Tendemos a responsabilizar os outros pelo que vai cá dentro. Mas, vários professores falam sobre isto, e faz todo o sentido: não é o outro que nos tira do sério: tudo o que sentimos, tudo o que vai cá dentro, é aqui dentro que o sentimos e é aqui dentro que se origina. É como se tivéssemos dentro de nós vários cómodos. Alguns, estão às escuras, não os percebemos, a não ser quando alguma luz os ilumina. A questão é que não é essa luz de fora que os cria: ela apenas mostra que eles estão lá. Aquela raiva, amor, já existe em nós e, com determinados gatilhos, revela-se. 

Cada vez que um pessoa nos diz alguma coisa, essa frase passa por vários filtros da nossa mente. Ouvimos, processamos os sons, entendemos o seu significado, e depois atribuimos-lhe um sentido que vai gerar em nós uma sensação e, possivelmente, uma emoção. O que dá peso a um gatilho é o processamento que lhe damos. A mesma coisa dita por pessoas diferentes, em contextos diferentes, tem peso e conotação completamente diferente para nós. Por exemplo, a simples frase "Olá, querida", se a ouvir de alguém que ama, soa carinhosa, amorosa. Se a ouvir de alguém com quem não tem uma boa relação, pode soar-lhe irónica, provocativa. Se estiver a caminhar na rua e alguma pessoa desconhecida lhe gritar "odeio-te!", isso, provavelmente, vai deixá-lo espantado mas indiferente, neutro. Se, no meio de uma discussão com o seu filho, ele gritar "odeio-te!", isso vai magoá-lo profundamente. Se algum professor que admira lhe disser "que trabalho maravilhoso!", vai sentir uma satisfação muito maior do que se for dito por um grande amigo. Se eu tenho problemas de auto-estima, facilmente coisas que outros dizem, podem ligar holofotes nesse meu problema. Se sou autoconfiante, dificilmente irei sentir-me abalada pelas mesmas coisas. Não são os outros, não são as palavras que nos geram determinadas emoções. Não é o que é dito que dita como nos sentimos, é o que sentimos - os nossos apegos, aversões, medos, identificações - que dita como processamos o que ouvimos. Então, os gatilhos podem funcionar como sinais de alerta: há algo aqui, em mim, no qual eu tenho que trabalhar. Se é cá dentro que tudo acontece, é cá dentro que tudo se pode resolver. E a melhor notícia: só depende de nós. É a velha máxima: "A felicidade é um trabalho interno." (Só é preciso coragem para o abraçar...)

199-365

Entre nós, chamávamos-lhe Mestre. Como se fosse o Obi Wan Kenobi na nossa vida. Não porque nos desse as respostas, mas porque sempre soube fazer as melhores perguntas. Hoje sei que, na cultura indiana, Mestre é "aquele que remove a escuridão" (da ignorância), ou "aquele que inspira a centelha do conhecimento." Então, nada mais certo do que ele ter sido o nosso Mestre. As perguntas que nos lançava, faziam-nos olhar para qualquer ponto escuro, mergulhar nele e procurar a luz que lá existia. Não era as respostas que ele procurava dar-nos, mas a sugestão da reflexão. Foi com ele que percebi a importância de saber fazer as perguntas certas. Foi ele que me deu a conhecer Osho, Khalil Gibran, Fernando Pessoa, José Gomes Ferreira e Sebastião da Gama. Foi ele que me emprestou "Senhor Deus, esta é a Ana." Foi ele que me deu "o livro das minhas histórias" em branco - que estou a preencher, e que vai ser o primeiro a ler, como lhe prometi. Foi meu ombro amigo, foi no seu abraço que encontrei um porto seguro, no silêncio que partilhávamos de forma tão especial. Aquele silêncio que era só nosso, que só nós ouvíamos e compreendíamos, no nosso olhar, sempre cúmplice. Foi professor, amigo, Mestre, pai, padrinho. O bonito da amizade é que, mesmo quando a vida nos leva por caminhos diferentes, ela continua a viver dentro de nós. O meu carinho e admiração por ele são eternos. Sempre, sempre terá um cantinho muito especial no meu coração. E, hoje, no teu dia, quero desejar-te um ano repleto de lindos pôr-do-sol, belas músicas, muito mar, bons livros e filmes e, acima de tudo, muitos abraços e momentos felizes com quem mais amas. Feliz aniversário, meu Mestre pa(i)drinho! Que a vida te sorria sempre, da mesma forma que tu sempre soubeste sorrir-lhe com o teu olhar cheio de doçura. 

198-365

Uma das coisas que eu gosto em dar aulas a crianças, já o disse algumas vezes, é poder relembrar-me sempre como é ver o mundo através dos olhos delas. Hoje, eu e uma funcionária da casa de uns alunos, conversávamos sobre amanhã ser greve de transportes públicos. O meu aluno perguntou-nos o que era greve. Explicámos, e comentámos que era uma forma de chamar a atenção para a reivindicação dos trabalhadores e até de exercer pressão. Ele, com uma expressão confusa, disse "não entendo...não é mais fácil só sentar, conversar e chegar num acordo?" Por vezes, acredito que o mundo seria um lugar bem melhor se todos mantivessemos o nosso olhar de criança.

197-365

 Sexta foi dia de feira aqui. (Uma espécie de mercado a céu aberto.) Comprei uns pêssegos bonitos que arrumei no carrinho de forma que pareciam seguros. No entanto, ao chegar a casa, percebi que um deles tinha ficado ligeiramente amassado. Deixei-o separado para o comer antes de todos os outros que estavam intactos. Algumas horas depois, aquele pedacinho que estava amassado, já tinha escurecido um pouco, como se estivesse mais maduro que o resto do pêssego.

Fiquei a pensar...Talvez sejamos como as frutas: as nossas "batidas", as coisas que nos amachucam, fazem-nos amadurecer mais rápido. (Só é preciso ter atenção para que a batida não nos apodreça...)

196-365

 Quando tocamos piano, muitas vezes temos várias notas em simultâneo, seja numa mão só, seja distribuídas por ambas as mãos. Um dos desafios do piano é, precisamente, conseguir um bom equilíbrio sonoro entre todas as notas que estão a soar ao mesmo tempo. Muitas vezes, é preciso escolher a qual ou quais delas vamos dar mais relevância. No entanto, mesmo aquelas que não queremos destacar tanto, têm de estar primorosamente tocadas, apenas na intensidade que escolhemos tocá-las. Quando queremos fazer esse tipo de trabalho, é preciso ouvir, entre toda a malha sonora que estamos a tocar, uma linha apenas ou, caso se trate de uma questão de equilíbrio entre ambas as mãos, em qual delas queremos que a nossa escuta recaia. Não raras vezes, isso gera-nos uma dificuldade: quando mudamos o nosso foco de atenção da linha principal, por exemplo, para uma secundária, ou mesmo de uma mão para a outra, sentimo-nos perdidos. De repente, começamos a ouvir algo - ou a não ouvir algo - que foge à nossa expectativa, e isso destabiliza-nos. Idêntico ao que acontece quando estabilizamos numa posição de equilíbrio e, depois, fechamos os olhos: perdemos a referência que tínhamos criado e, com isso, perdemos o equilíbrio novamente. Também no piano, quando perdemos a referência sonora que tínhamos, por exemplo em uma das mãos, começam a surgir erros e/ou dúvidas na outra mão. Por outro lado, quando tiramos o nosso foco daquilo que estamos habituados a ouvir para prestar atenção a outra linha, ela surge como nova! De repente, começamos a aperceber-nos de pormenores, nuances que até então tinham-nos escapado. Essa nova forma de ouvir, enriquece a nossa audição e execução. E assim é com a vida: por vezes estamos "presos" a uma forma de "ouvir" o que nos rodeia, e não nos apercebemos de tantos outros "sons" que estão à nossa volta. Assim como mudar o foco na nossa escuta de uma música faz uma nova música surgir e enriquece a nossa experiência, mudar o nosso foco na forma de olhar para o mundo, faz um novo mundo surgir e enriquece e aprofunda a nossa forma de estar no mundo.

Não acredite em mim: experimente! Na próxima vez que ouvir a sua música favorita, procure tirar o foco da melodia principal e prestar atenção a algum outro instrumento, a uma voz secundária, e veja como vai aperceber-se de coisas que em dezenas de vezes em que ouviu essa música nunca se tinha apercebido. Ou, quando fizer aquele mesmo caminho para casa, preste atenção a coisas que nunca viu nesse caminho. Elas estão lá. Veja por si mesmo. 

195-365

 Muitas vezes, ao dar aula de piano, vejo o mesmo movimento nos meus alunos (que o meu professor também via e corrigia em mim): nas passagens mais difíceis, contraem o corpo. O ombro sobe, o pulso e antebraço contraem-se, e os dedos acabam por "prender". O corpo contrai porque a mente se contrai no pensamento "é muito difícil, não vou conseguir". Quando a mente se encolhe na crença de que não é possível, o corpo também o faz. Sempre que vejo isso em algum aluno ou o percebo em mim, digo o mesmo que o meu professor dizia "pensa que é fácil!" É preciso abordar essas passagens com leveza, porque se a mente faz esse movimento de "é difícil", o corpo reage em contração e, com isso, diminuimos a capacidade de concretizar a tarefa a que nos propomos. O corpo encolhe, deixa de atuar no máximo do seu potencial. Mas não basta tentar relaxar o corpo, é preciso partir da mente: se a mente se expande para a possibilidade de conseguir, o corpo reage com abertura. Quanto mais pensamos que uma passagem no piano é difícil, mais difícil se torna passar por ela com êxito. Talvez o mesmo aconteça com todas as coisas da nossa vida: quanto mais encaramos as dificuldades de peito aberto, "como se fossem fáceis", talvez mais fácil seja passar por elas. A abertura na mente, o peito aberto, abre os caminhos do corpo, e isso ajuda-nos a navegar na vida com mais leveza. Fica a dica: "pensa que é fácil."

194-365

Hoje comemora-se o Dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos. Sempre que chega este dia, ecoa imediatamente na minha mente a melodia com os versos "Cecília tu foste eleita entre os servos do Senhor nossa guia protetora que nos leva ao Salvador." Quantas e quantas e quantas vezes cantámos este Hino na escola e arredores? E quantas vezes o maestro professor Henrique Fernandes se desesperou com quem não dava o tempo todo da pausa antes de "nossa guia protetora"? "Comigo! É comigo!", e batia com o lápis na estante. O mesmo professor Henrique Fernandes contava de forma maravilhosa - como tudo o que nos narrava de História da Música - a história dessa jovem nobre romana que se converteu ao cristianismo, numa época em que os cristãos eram perseguidos em Roma. O seu marido e cunhado, impressionados com a sua fé inabalável, convertaram-se também. Louvava a Deus com cantos que impressionavam e convertiam quem a ouvia. Finalmente, foi perseguida e condenada, mas convertia os seus torturadores, e escapava milagrosamente às torturas. Quando, enfim, sentiu que a vida se extinguia, cantou novamente em louvor a Deus. Depois da sua morte, começou a ser adorada como mártir. E, hoje, é no dia de Santa Cecília que nós, músicos, celebramos também o nosso dia. A todos os músicos: um dia feliz, e lembremo-nos sempre do quão poderosa a música é.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

193-365

 Normalmente, quando as crianças estão a aprender uma música nova, aprendem-na primeiro de mãos separadas. Ao aprender muito bem e ganhar confiança no caminho que cada mão tem que fazer, torna-se mais fácil no momento de as juntar. A probabilidade de uma atrapalhar o caminho da outra é menor. No entanto, depois de aprenderem a tocar a música de mãos juntas, se não houver uma manutenção do trabalho de mãos separadas - e isso vale para qualquer um de nós, não apenas as crianças -, ambas as mãos se tornam dependentes uma da outra: apenas sabemos o que a direita faz enquanto tocamos a esquerda, e vice-versa. Se tiramos uma das mãos da equação, a outra fica totalmente perdida. Por isso é tão essencial continuar a trabalhar de mãos separadas, para que cada uma esteja muito segura do que tem que fazer. Além disso, é extremamente importante cuidar de cada nota de cada mão para que a música tenha a melhor interpretação possível. Não adianta ter um excelente fraseado na mão direita, por exemplo, a expressividade requerida, se a mão esquerda não está a fazer o seu papel de acompanhamento com o mesmo grau de perfeccionismo. O meu professor dizia sempre "é preciso que o que é secundário esteja perfeito para que o que é principal possa 'aparecer' em plenitude". Com um acompanhamento descuidado e cheio de imperfeições, nenhuma melodia da mão direita pode soar corretamente.

Isso fez-me refletir em tantas coisas que funcionam da mesma forma na nossa vida. Por um lado, as dependências que criamos sem as questionar ou sequer as perceber, por vezes - tal como acontece com os alunos que nem se apercebem que já só conseguem tocar uma mão em função da outra. "Só funciono de manhã se tomar o meu café", "não passo sem o meu chocolate na TPM", e tantos outros incontáveis "só consigo/faço X se Y" na nossa vida, tantas coisas que vamos "atrelando" a outras. Por outro lado, a falta de cuidado e zelo que temos com certos aspetos da nossa vida e que diminuem a nossa qualidade de vida. Não adianta alimentar-se bem mas entupir-se de pensamentos negativos. Exercitar-se mas só comer comida industrializada. Meditar mas ser impaciente com os outros e não conseguir manter boas relações. Alimentar-se bem mas não cuidar da qualidade do sono. Todos esses pilares da saúde (alimentação, exercício, sono e momentos de silêncio/pausa), tanto os que nos parecem principais como os que nos parecem secundários, são essenciais na nossa vida. Como um todo. Assim como ambas as mãos e todas as notas têm a sua relevância na música. Fica a reflexão...

domingo, 19 de novembro de 2023

192-365

 


Após um exame importante de piano, a minha professora presenteou-me com uma partitura de Debussy. Autografou-a escrevendo algo como "ofereço esta bela obra para a qual não te falta sensibilidade para interpretar." Lembro-me de ficar particularmente intrigada com a palavra "sensibilidade". Na cultura ocidental, somos programados para ver "sensível" como algo frágil, fraco, susceptível. Lembro-me de ter conversado com a minha mãe sobre isso, e de ela me ter explicado que, na verdade, era um elogio à minha forma de olhar para o mundo. Se virmos no dicionário, atribui-se a "sensibilidade" "a faculdade de sentir". E, se pararmos para pensar, nada nos torna mais humanos do que a nossa capacidade de sentir. Nenhum outro ser vivo tem o privilégio de poder emocionar-se com uma música, um pôr-do-sol, uma paisagem. Nenhum outro ser vivo pode usufruir da mesma forma que nós do privilégio da contemplação. Sim, vemos manifestações de afeto em diversos animais, mas nenhum outro pode deixar-se tocar pelo mundo que o rodeia como nós e, da mesma forma, impactar o mundo que nos rodeia através da expressão das nossas emoções. Eu sempre fui sensível porque eu sempre me permiti sentir. Por qualquer razão que seja, sempre existiu em mim essa abertura. Sentir o vento que bate no rosto, o sol que aquece a pele, as cores do céu, das flores, das borboletas, o som do canto dos pássaros, das ondas do mar, das músicas, a emoção que surge com um bom filme ou um bom concerto. (Sou de "lágrima fácil".) E hoje, percebo que ser sensível não é qualquer tipo de fraqueza. Na verdade, talvez seja preciso uma certa coragem para se abrir a sentir. Eu abraço essa característica sem o menor constrangimento porque, hoje, acredito que é uma das melhores partes de mim. É essa sensibilidade que transborda na minha música e nos meus textos. É essa sensibilidade que toca a sensibilidade de quem me ouve ou lê. É essa sensibilidade que me mostra o mundo como eu o vejo - e é um lugar que vale a pena ver, e que eu gostaria que todos pudessem ver! E é nessa sensibilidade que vive a minha maior força: a sensação de pertencimento a algo maior que eu. Nada nos torna mais humanos do que isso.

191-365

 Hoje estava a estudar piano e, numa passagem particularmente rápida e exigente tecnicamente, optei por estudar sem pedal. O piano tem um pedal que permite sustentar ou prolongar o som das notas tocadas. Utilizamos esse pedal como um recurso que nos permite, por exemplo, ligar melhor as notas, ou manter as notas do baixo presentes, ou mesmo criar "ambientes sonoros" diferentes. No entanto, se não for corretamente utilizado, é um recurso que pode gerar bastante "poluição" sonora. Não apenas porque podemos estar a usá-lo em excesso ou de forma em que deixamos que as harmonias se misturem ( e, por isso, se desconfigurem), mas também porque há uma tendência para "tapar" erros ou defeitos com o pedal. Sim, é um facto que o pedal pode disfarçar algumas passagens menos "limpas" (com menor precisão técnica). Por isso é tão importante estudar totalmente sem pedal, prestando atenção a cada nota, cada gesto, cada elo de ligação. Dessa forma, podemos olhar para a passagem despida de artifícios, límpida, transparente e, então, sim, podemos torná-la clara, inequívoca, com qualidade sonora. Só então, o pedal é uma ferramenta que vai acrescentar alguma coisa, e não apenas "retirar" um pouco dos erros, como uma maquilhagem disfarça uma mancha no rosto. Tentar disfarçar os erros, fingir que eles não existem, não os resolve. O que resolve os nossos erros ou defeitos é, antes de mais, reconhecê-los, apoderar-se e apropriar-se deles. Então, sim, podemos fazer alguma coisa em relação a eles. Porque quando os reconhecemos como "nossos", assumimos o poder e a responsabilidade de os transformar. Esse é o caminho do crescimento e da evolução, seja em que área ou aspecto da vida for.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

190-365

Quem vê um campeonato de ginástica e se encanta com a incrível flexibilidade demonstrada pelos ginastas, pode supôr mas nunca imaginar o sofrimento que está por trás da aquisição daquela habilidade. Não sei como funciona hoje em dia, mas quando eu praticava ginástica, havia uma parte do treino que era muito sofrida. Todas enfileiradas, em posição de abertura máxima de pernas, aguardávamos a vez de a treinadora "nos puxar". Íamos assistindo ao sofrimento das colegas, e antecipando o nosso "faltam três... faltam duas..." Chegava a nossa vez, a treinadora aproximava-se e empurrava o nosso tronco ou quadril contra o chão, forçando a abertura. (O mesmo processo acontecia para ombros e costas.) Eram poucos segundos. Pareciam uma eternidade. Prendíamos a respiração e hesitávamos entre a contração que o nosso corpo, instintivamente, queria fazer, e a descontração que era necessária para não criar uma força oposta que dificultava ainda mais a situação e poderia até gerar uma lesão. Sim, muitas vezes chorávamos de dor. Mas sabíamos que era "um mal necessário" para se atingir determinado fim. Para obter mais flexibilidade e ter performances cada vez mais belas e perfeitas, sabíamos que era preciso passar por aquele processo.

Até aos meus 17, 18 anos, mantive uma flexibilidade incomum. Com o passar dos anos, fui deixando de me exercitar, e fui perdendo a flexibilidade. Até que, desde o começo do ano passado, comecei a praticar yoga com muita regularidade. Aos poucos, a flexibilidade foi voltando. Mas, desta vez, sem forçar. No yoga, a evolução acontece na entrega: no respeito pelo corpo, na observação do corpo, na percepção de onde podemos "soltar", de como "soltar" e sempre, sempre, mantendo a respiração consciente, ampla. Essa, para mim, talvez seja a maior diferença: a leveza que a respiração consciente me traz, e que me permite encontrar conforto no desconforto, que também é um passo do yoga. Isso proporciona-nos usufruir do processo, curti-lo, e o processo acontece seguindo um fluxo e não forçando um resultado. O corpo vai cedendo, por si mesmo, vai encontrando formas de se soltar, caminhos para se ampliar. Sim, ainda há uma dose de dor envolvida, mas uma dor que deve ser apenas desconfortável, e nunca insuportável.
Hoje, com 42 anos, posso dizer que há mais de 20 não tinha esta abertura de pernas. E não digo isto para impressionar ninguém, mas para incentivar qualquer que seja o processo ao qual querem dedicar-se: abracem-no, curtam-no, acreditem que é possível, saibam que nada vos impede, e que não é preciso forçar a chegada ao resultado, mas entender como entrar no fluxo de lá chegar.

189-365

 O calor em São Paulo está difícil de suportar. Andar na rua tornou-se uma tarefa física e mentalmente exigente. Custa a respirar, o sol queima a pele. O desgaste é grande. A vontade é parar. Mas é preciso continuar, um passo atrás do outro. Se nos mantivermos absolutamente concentrados no ar a entrar e sair das narinas, é mais fácil manter o controle. A respiração mantém-nos conectados com o corpo, e isso ajuda a apaziguar a mente. Se as nuvens encobrem o sol, sentimos como uma benção. Quando a rua está na sombra, aproveitamos para ganhar ânimo. Se corre uma brisa fresca, sorrimos. Sabemos que, em algum momento do dia, o calor vai dar uma trégua, e isso, só por si, é um conforto.

Que possamos enfrentar as dificuldades da vida com a mesma resiliência. Um passo atrás do outro, uma inspiração e exalação atrás da outra, percebendo e aproveitando as sombras e brisas que surgem no caminho, e sabendo que, em algum momento, tudo vai passar.

188-365

Quando era pequena, na minha turma da escola havia outras Joanas. Para diferenciar das outras, passei a ser a Joana Gabriela. Não era um nome que me agradasse muito. Não sei porquê, mas até certa idade, embirrava com o nome "Gabriela". Quando entrei para a ginástica, passei a ser "Joana Alves". Então, dos 6 aos 14 anos, eu era Joana Gabriela na escola e Joana Alves na ginástica. Quando entrei para a Faculdade de Direito, já tinha feito as pazes com o meu "Gabriela" e quando entrei para a equipa de futsal feminino, e escolhi "Gabi" para ter nas costas da camisola. A partir daí, durante aqueles 4 anos de Direito, toda a gente me chamava Gabi. Algumas pessoas chamam-me, carinhosamente, Joaninha. Na Escola Superior de Música de Lisboa era simplesmente Joana. Quando casei, em algumas ocasiões passei a ser chamada "Joana Rezende", e quando me mudei para o Brasil, algumas pessoas aqui começaram a chamar-me "Jô". Para o meu irmão, sempre fui a "mana" ou a "maninha". Para os meus pais sou "filhota", e para o Mateus, tornei-me a "mamãe".

Todos nós vestimos muitas "peles" na interação com os outros. Talvez cada um desses nomes pelos quais sou chamada, se dirija a recantos específicos de mim mesma ou corresponda a certos espectros meus. Mas há alguma coisa que permeia todos os nomes, uma Luz que ilumina todos esses cantos, que percorre e dá vida a cada uma dessas camadas. Cada uma delas é tecida pelo mesmo fio. Aquele pedacinho inviolável, intocável, eterno que responde à pergunta mais essencial de todas: quem sou eu? Essa é a pergunta mais premente, a que nos faz atravessar todas as camadas e vislumbrar o que está para além delas. E essa deve ser a nossa eterna busca.

187-365

 





Às vezes, ao caminhar pela cidade, sou surpreendida por detalhes absolutamente perfeitos da Natureza. Contemplo e acolho cada um como se se tratasse de um presente especial. Se tenho alguns minutos, deleito-me naquele momento. Eu e aquela flor nunca mais vamos ter a mesma interação. Mesmo que eu passe no mesmo lugar no dia seguinte, já não é a mesma flor, não é a mesma luz, o mesmo vento, não é o mesmo momento. Talvez nem eu seja a mesma. Em dias diferentes, o meu olhar é diferente. Sempre novo. As sensações são outras. A Natureza relembra-nos que tudo é cíclico, tudo é perene e, ao mesmo tempo, tudo é único, irrepetível. A Natureza relembra-nos que tudo é perfeito exatamente como é, tudo segue uma Ordem que escapa ao nosso entendimento. Testemunhar a beleza única desta flor, faz-me comungar com ela dessa perfeição. Contemplo-a e penso "como poderia esta flor ser mais bela e perfeita do que já é?" Não imagino nada, nem uma pequena pinta que pudesse torná-la mais perfeita. Sinto como se o Divino me sorrisse através dela, como se, carinhosamente, me dissesse "estou aqui, nunca te esqueças disso." E perante este milagre, daquela flor incrivelmente perfeita, a balançar levemente com o vento, eu sei e sinto-O: ele está ali, nela, aqui, em mim, e no espaço entre nós. E, então, eu sorrio de volta. "Estás aqui, nunca me esqueço de me relembrar disso."

186-365

 "Estica a ponta do pé", "joelhos esticados", "barriga para dentro", "atenção aos dedos da mão", "esse dó um pouco mais, e o ré seguinte um pouco menos", "sincroniza melhor as notas do acorde", "rigor no andamento". Desde pequena, envolvi-me em atividades que primam por uma busca minuciosa da perfeição. Na ginástica artística, qualquer pequeno desequilíbrio, desalinhamento no corpo, imperfeição na posição de pés, pernas ou mãos, prejudica a beleza estética dos movimentos (e significa décimos a menos na nota final). Na música, há uma constante busca por moldar o som da melhor forma possível. Todo e qualquer detalhe faz diferença na forma como se fraseia. Há passagens em que cada nota é milimetricamente planeada para que, no resultado final, todas se encaixem de forma a que consigamos atingir a expressão mais verdadeira possível. Em ambas as atividades, há uma enorme exigência de esforço, empenho, dedicação. Há um "querer fazer" sempre mais, sempre melhor. É preciso tempo para aprender os movimentos, para os entender, paciência para os dominar, para se apropriar deles, para que sejam "nossos", e investigação para optimizá-los o mais possível. É essencial ter uma intenção firme, uma construção mental de onde se quer chegar. É preciso acreditar que é possível chegar lá. Depois de todo o trabalho feito, de cada gesto estruturado, organizado, depois de perseverantes e contínuas repetições, é necessário confiar no trabalho feito, e entregá-lo, entregando-se ao momento. A disciplina e o trabalho têm que ser feitos com tal minúcia que nos permitem esquecê-los, ir além da técnica e chegar nas sensações. É preciso trabalhar até que o trabalho se torne "invisível". Depois do trabalho feito, é preciso desprender-se desse labor e abrir-se à possibilidade de tudo o que pode acontecer. É aí que a magia acontece. Quando já não há um querer fazer, mas apenas um Ser. Quando se vai além do gesto, porque ele está em nós, além da técnica porque a executamos sem a perceber, e podemos, camada a camada, transbordar naquele momento. Mergulhamos nele, ele atravessa-nos e preenche-nos ao mesmo tempo que é preenchido por nós. E depois? Começamos tudo outra vez, com o mesmo empenho, zelo e desprendimento. Nunca sabemos onde o caminho nos vai levar.

185-365




Quando não nos exercitamos há um tempo ou quando aumentamos a intensidade dos exercícios que fazemos, sentimos o corpo dolorido. Não raras vezes, apercebemo-nos de músculos que, até então, estavam desconhecidos para nós. A nossa atenção é direcionada para aqueles centímetros quadrados muito específicos da perna, por exemplo. E pensamos "Esse músculo sempre esteve aqui? Eu já o utilizei antes?" E, assim, ganhamos mais consciência corporal. Apropriamo-nos do nosso corpo. Acordamo-lo, aos poucos, utilizando cada vez mais o seu potencial. Por que não fazer o mesmo em relação às nossas emoções, crenças, medos? Olhar para dentro, exercitar tudo o que vai cá dentro, pode ser bem mais doloroso do que mexer o corpo. Assim como nos apercebemos dos músculos até então desconhecidos, mergulhando dentro de nós, podemos descobrir emoções que teimamos em manter escondidas. Olhá-las, pode provocar desconforto, até fazer-nos (re)viver algumas dores, mas é a única forma de realmente lidar com elas. Olhar, com curiosidade, abertura, entrega, é a única forma de as compreendermos, pois "é na dor que está a cura da dor." (Rumi) (Ou, em outras palavras, "a Verdade te libertará.")

184-365

 


Ao estudar yoga, percebo conexões inegáveis com a música. Desde logo na definição de yoga que Patanjali nos traz no começo do seu tratado Yogasūtra: "o Yoga é acessar a mente coração através da estabilização dos movimentos
da mente." (Tradução do Professor Caio Corrêa) Ou seja, mantendo uma qualidade da mente de completa entrega ao momento presente, atingimos um estado de yoga em que acessamos aquele lugarzinho especial de nós mesmos que identificamos como a nossa essência - e, comumente, se intui morar no nosso coração. Em raras ocasiões pude sentir-me tão perto desta definição como sentada a tocar piano. Quando superamos as questões técnicas e a mente fica tão focada naquele momento, conseguimos entregar-nos completamente a cada nota tocada, de tal forma que as notas deixam de existir: passamos a Ser cada nota tocada, e cada nota tocada é um pouco de nós. Estamos em cada uma delas, e cada uma delas toca-nos na nossa mais profunda essência. O que será isso se não samadhi? - tornar-se idêntico à sua essência. E esses momentos acontecem após um caminho. O caminho do yoga. Um caminho de muita disciplina, empenho, esforço continuado e persistente, mas feito com cuidado, zelo. Não pode ser um estudo automático, distraído, mas um estudo consciente, atento a cada som, a cada gesto, com devoção e amorosidade tentando perceber a cada momento qual a melhor solução possível para aquela situação. Aprender os gestos, as técnicas, para depois poder deixar a mente tão focada em um ponto só que tudo isso se desvanece. Não estudamos por obrigação, mas por devoção à Música, à Beleza, a algo maior que nós mesmos e que conseguimos acessar ali. Teremos obstáculos: a mente dispersa, outras vezes está mais letárgica, preguiçosa e outras entra em "piloto automático", num estudo incipiente e mecânico, sem conexão. Por vezes, a memória de um erro anterior, precipita um novo erro. Teremos medo, hesitações, dúvidas, desânimo e, outras vezes, excesso de confiança. Depois do trabalho feito, do empenho, é essencial não se prender ao desejo de um resultado final e nem sequer a qualquer resultado final que se obtenha, porque a única coisa que está sobre o nosso controle é a nossa ação, mas não o resultado dela. Entregar-se! Um momento após o outro. Pular de braços abertos no escuro: não há o que temer! Quanto mais mergulhamos, seja qual for o resultado, mais poderemos acessar quem realmente somos, em essência, mesmo que em breves vislumbres. Aos poucos, vamos cada vez mais reconhecendo-nos como nós próprios. E assim seguimos: no caminho. 

183-365

Com o passar do tempo, percebemos cada vez mais, o valor do tempo que passa. Queremos aproveitá-lo o melhor possível. Não queremos desperdiçá-lo com coisas que achamos que não valem a pena. Por isso, cada vez que escolho ver um filme ou uma série, fico realmente frustrada quando chego ao fim e penso "não acredito que perdi o meu tempo a ver isto..." Felizmente, não foi o caso ontem ao ver o filme "um lindo dia na vizinhança" (netflix), com o Tom Hanks. Só por si, ver o Tom Hanks a atuar já é um enorme prazer e privilégio. Neste filme, mais uma vez, ele esbanja talento e carisma.

O filme é uma história biográfica do apresentador de televisão Fred Rogers, famoso nos Estados Unidos da América pelos seus programas para o público infanto-juvenil. O jornalista Lloyd Vogel é escolhido para escrever o perfil do apresentador para a revista em que trabalha. Ao conhecer o apresentador, a sua vida começa a mudar e, ao longo da história, os dois constroem uma bonita amizade. Rogers é um homem encantador, gentil, e de uma sabedoria inspiradora. Uma das mensagens mais bonitas que nos transmite é que não temos de evitar ou esconder as emoções, mas sim aprender a reconhecê-las e a encontrar ferramentas que nos ajudem a lidar com elas. Um dos exemplos de formas de lidar com a raiva que ele dá? "Apertar todas as teclas graves do piano ao mesmo tempo" - essa, eu conheci muito bem durante anos!
O filme tem uma arte muito bonita, em que mistura imagens dos programas de Rogers com imagens de maquetes dos cenários onde a história se desenrola. Tudo muito sensível, singelo. Há um minuto do filme, em particular, uma sequência de 60 segundos, que já faria todo o filme valer a pena. Tenho a certeza que toda a gente que vê este filme, mergulha naquele "1 minuto" junto com os personagens e emociona-se tanto quanto eles.
Rogers é-nos apresentado como uma pessoa absolutamente incrível, admirável. Gentil, calmo, compreensivo, altruisticamente generoso, com um senso muito grande de servir aos outros, de saber ouvir o outro.. Em alguns momentos, parece... perfeito, um santo. Mas o detalhe do final do filme, mostra-nos que ele, apesar de ser aquela pessoa encantadora e tranquila é tão humano como todos nós. Talvez tenha, apenas, mergulhado e abraçado a sua natureza humana de uma forma tão profunda que aprendeu a navegar nela com serenidade, apesar de qualquer intempérie. Foi esse o  caminho que inspirou o jornalista Vogel e, com certeza, todos os que assistirem o filme.