terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Eu e a Gioconda

 "Um professor afeta a eternidade; é impossível dizer até onde vai a sua influência."

                                                                                Henry Adams


Nem eu nem a Gioconda poderíamos imaginar o caminho que iríamos percorrer quando, naquela tarde, com 8 anos de idade, entrei na sala dela com a minha amiga Inês. Posso dizer que não me lembro das minhas primeiras aulas de piano, mas recordo-me claramente desse dia em que conhecemos a nossa professora. Recebeu-nos enquanto dava aula a uma aluna mais velha, na sala 3 - a "sala da professora Gioconda". Com aquela amabilidade que a caracterizava, sorridente, pediu-nos para lhe mostrarmos as mãos. Ambas estendemos as mãos abertas na direção dela que exclamou "Que lindas mãos de pianista que vocês têm! Tenho a certeza que vão ser boas alunas!". Nós, tímidas - do género "entrar muda e sair calada" - nem sei se comentamos muita coisa durante os minutos em que estivemos ali. Acho que ouvimos a aluna mais velha tocar alguma música e a Gioconda motivou-nos, mais uma vez, "Daqui a pouco são vocês a tocar assim!.." Quando saímos da sala, lembro-me de olharmos para as mãos, encantadas: "a professora diz que temos mãos de pianista..."

Mas..aos 8 anos de idade, o piano não era uma paixão para mim. Era só mais uma disciplina da escola à qual me dedicava o quanto podia, o melhor que podia, dentro do tempo (limitado) que a ginástica artística - essa, sim, minha paixão - me deixava. Desses primeiros anos, lembro-me bem do começo das aulas, da exigência da Gioconda em querer a melhor posição das nossas mãos ao piano - como uma "bolinha" e com o pulso leve - e das músicas a 4 mãos que toquei com a Inês e uma música a 6 mãos que toquei com a Inês e outro colega nosso - momentos de muita diversão e aprendizagem que guardo com o maior carinho.

Os anos foram passando e, não sei precisar em qual momento, a Gioconda teve de diminuir as horas de aulas e conversou com a minha mãe para saber qual seria a minha intenção em relação ao piano dali para a frente, uma vez que a ginástica ocupava a maior parte do meu tempo e prioridade. A minha mãe - obrigada, mamã - disse-lhe que não desistisse de mim que, quem sabe, um dia, eu poderia dedicar-me mais ao piano. Após um período conturbado, muitas lesões e um cansaço/desânimo, desisti da ginástica. Em pouco tempo, pensei também desistir do piano - talvez um pouco de rebeldia da adolescência - e tive algumas das piores discussões com a minha mãe, que não me deixou desistir - mais uma vez: obrigada, mamã. Mas, vindo não sei de onde, comecei a sentir um vazio pela falta de objetivos, desafios aos quais estava constantemente habituada com a ginástica. E, bem nesse momento, a Gioconda resolveu ter uma conversa séria comigo e a Inês. "Vocês estão a ficar atrasadas no programa de piano, e têm de decidir o que querem fazer. Se quiserem desistir, tudo bem, deixarei de ser vossa professora mas terão sempre a minha amizade. Mas se optarem por continuar, fazer o exame de 5º grau, têm de mudar de atitude, dedicar-se, estudar horas e horas por dia, desenvolver a técnica." Nessa altura, eu já estava a estudar um Prelúdio de J.S Bach que mexia com a minha sensibilidade. Comecei a perceber que, quando tocava piano, conseguia exprimir-me de uma forma que as palavras não permitiam. De alguma forma, conseguia aceder a partes de mim às quais não chegava por nenhum outro meio. Então, naquele momento oportuno, a Gioconda soube dizer exatamente o que eu precisava ouvir e aquelas palavras mexeram profundamente comigo - como tantas e tantas vezes aconteceu. Não ia desistir novamente! Resolveu trocar todas as minhas peças - excepto o tal Prelúdio de Bach. Com enorme sensibilidade à nossa personalidade, como era sua característica, tocou algumas peças para eu escolher. E como tocava bem! Uma exímia pianista, de uma sensibilidade e expressividade raras. Tudo parecia fácil quando era ela a tocar. Entre as peças que tocou para eu ouvir, estava uma Canção sem Palavras de Mendelssohn. Emocionou-me como nenhuma música antes, com aquele arrepio na espinha e, sem qualquer dúvida, escolhi-a. Aprovou a minha escolha dizendo, como costumava, "Vai ficar-te muito bem." E, sim, foi essa peça que mudou a minha vida. Foi ali que eu percebi tudo o que a música me permitia exprimir. Sem palavras. A Gioconda dizia-nos "a música é poesia, e as notas são as nossas palavras. Se tu te emocionas a tocar, os outros também se emocionam a ouvir-te." Comecei a estudar várias horas de piano por dia. Abraçava, apaixonada, o ideal de perfeição que a Gioconda nos fazia perseguir. Incentivava-nos a sonhar, a encontrar a nossa Voz, a desenvolver a nossa sensibilidade, mais ainda do que a nossa técnica. Ao mesmo tempo, fomos estreitando laços a um ponto em que eu não tinha que dizer se estava tudo bem comigo ou não: era só entrar na sala e ela já sabia, só de olhar para mim. Mais do que professora, tornou-se uma grande Amiga, que sabia respeitar o nosso silêncio e ouvir os nossos desabafos. Também conversava connosco sobre a vida dela, fazia questão de nos mostrar que era "gente como a gente" (como se diz aqui no Brasil), com alegrias, tristezas, problemas, preocupações. Enfrentou perdas e doenças com coragem e resiliência. Tudo isso nos fazia admirá-la sempre mais. Admirávamos não só a excelente professora e pianista que era, mas o ser humano sensível, generoso, dedicado que sempre foi. (Quantas vezes corria para ajudar a família, quantas aulas a mais nos dava, quantas vezes nos recebeu na sua casa em aulas particulares sem aceitar nenhum pagamento?) Elegante, amável e educada como nenhuma outra pessoa que tenha conhecido. Carinhosa connosco, fazia questão de nos escrever bilhetes que entregava, principalmente, nos dias das audições - verdadeiros tesouros para mim. Não tinha vergonha de se emocionar. Não raras vezes a vimos chorar, emocionada com a música ou com bilhetes que também gostávamos de lhe escrever. Hoje, faço questão de a lembrar e homenagear aqui mas, se há coisa que me deixa feliz, é saber que sempre o fiz, sempre soube exprimir-lhe a gratidão pelo grande presente que me deu, e de uma forma tão especial e completa: a Música. Sempre soube desculpar-me quando errei. Sempre soube exprimir-lhe o quanto a admirava, o quanto a nossa amizade significava para mim. Sempre demonstrei afeto e carinho. A Gioconda inspirava-nos a procurar e a ser o melhor de nós. Não só na música, mas na vida. Uma das evidências disso é a classe de alunos unida e coesa que conseguiu construir. De alguma foma, nós éramos o espelho das qualidades humanas da Gioconda: não havia a menor competitividade entre nós. Só entreajuda, amizade, zelo, carinho. A Gioconda promovia o nosso convívio, e todos conhecíamos bem as peças que todos tocavam, por isso, sabíamos exatamente quais eram os compassos mais difíceis para cada um de nós, e o que sempre aconteceu foi uma enorme corrente de boas energias que se formava enquanto cada um de nós se apresentava em público. Nas partes difíceis, todos cruzávamos os dedos e, quando tudo corria bem, todos comemorávamos como uma conquista de cada um. Quando corria menos bem, todos nos apoiávamos. Criámos amizades fortes e verdadeiras. Algumas das minhas melhores amigas até hoje, são desse grupo. Tenho a certeza que a Gioconda ficaria feliz de saber que permanecemos próximas.  

Infelizmente, já a tínhamos perdido, sem a perder, há vários anos. Deixamos de partilhar tantas coisas... A última vez em que a encontrei, conseguiu lembrar-se de mim, do meu nome e de onde me conhecia mas, quando lhe mostrei a fotografia do meu filho bebé, não conseguiu esboçar nenhuma reação. Naquela época, já era apenas uma sombra pálida do ser humano iluminado que foi. Não imagino o sofrimento que a família passou - sempre admirámos a forma como ela e o marido se olhavam, com ternura e admiração, a linda relação que tinham construído depois de tantos anos juntos. Quando, nesse dia, me despedi do marido, confidenciou-me que a Gioconda jamais tinha apagado do telemóvel as mensagens carinhosas que eu lhe enviava. Segurei as lágrimas enquanto o abraçava, mas desabei. Que falta que ela nos fez! Que falta que ela nos faz! Que bom que vivemos essa amizade. Que bom que cada uma de nós soube demonstrar à outra o que sentia. Que bom que ela continuará viva nos ensinamentos que nos deu e que nós passamos adiante, nas memórias que criamos juntas, no afeto e carinho que sempre teremos por ela, nas notas que tocamos no piano, na Música que, como a Gioconda dizia, "vai ser sempre a nossa melhor amiga." Obrigada, Gioconda. Obrigada. Até sempre.






terça-feira, 24 de novembro de 2020

Eu e o Théo




Nasceu no começo de 2019 - estima-se que no dia 8 janeiro. No penúltimo dia de março tornou-se o mais novo integrante da nossa família, por isso, decidimos adoptar o dia 30 de março para data comemorativa. Sugerimos todos os nomes possíveis e imagináveis. Mas era Theo que o Mateus queria. E Theo ficou.
No dia da adopção, parecia um anjinho. Estava lá num cantinho, sossegado. Fofo, fofo, fofo. "Podemos ver aquele?" Puseram-no no colo do meu marido e logo adormeceu. Depois ficou tranquilo no colo do Mateus. Os três olhávamos para ele enternecidos. Como resistir a tamanha fofurice? Ele dormia pacifica e tranquilamente como se o nosso colo fosse o seu lar. Logo percebemos que o Mateus já tinha feito a sua escolha. (E o Théo, aparentemente, também.) Quando o deitámos na cama na loja de animais, para testar se o tamanho era adequado, adormeceu, mais uma vez, ali mesmo - e compramos esse modelo de cama. Irresistível. Parecia um bichinho de peluche. Acho que foi o único dia da vida dele em que parecia ser um anjinho - vá, justiça seja feita, quando dorme ainda parece um anjinho. Mesmo depois de chegar à sua nova casa, continuou tranquilo, dorminhoco. Um doce.
Nas primeiras noites, tinha dificuldades para dormir a noite inteira e acordava muito, muito cedo. Realmente tínhamos, novamente, um bebé em casa, que não nos deixava dormir tanto quanto gostaríamos. Chegou pequenino. Tão pequeno que, durante o dia, adorava dormir escondido em baixo dos armários da cozinha. Insistiu em dormir lá até ficar entalado, alguns meses depois, e precisar de ajuda para sair por algumas vezes. Resignou-se à sua nova condição: passou a dormir ao lado do armário, só com a cabeça escondida em baixo dele. (Agora nem a cabeça dele cabe lá.) À noite, dormia num cantinho entre a nossa cama e a parede, com a cabeça igualmente enfiada em baixo da cama. Ainda hoje é um dos lugares preferidos dele para dormir, embora já não consiga enfiar a cabeça em baixo da cama - mas ainda consegue dormir em baixo da poltrona da sala, que ele usa como sua cabana.
A cama dele foi uma das primeiras vítimas: em poucos dias já tinha estragado o fecho e roído um dos cantos. Seguiram-se os pés das cadeiras da sala. Quando o deixámos sozinho em casa, arrancou pedaços de espuma de uma almofada. Em outra ocasião, cantos de lençóis e edredons - um dos lençóis ficou em frangalhos.
Sempre gostou de mordiscar e pular. O alvo predileto é, e sempre foi, o Mateus. Os dois fazem a festa, mas quase sempre acaba com reclamações das mordidas e arranhões.
É medroso. Gosta de passear, mas adora voltar para casa e, quando somos nós a sair, recebe-nos entusiasticamente, com pulos e mais pulos, como se não nos visse há meses!
Acho que o que mais gosta na vida é de comer. Claro que não a própria ração. Basta ouvir-nos na cozinha a mexer em alguma embalagem ou talheres e corre para lá para ver se vai ter sorte, e se nos vê a comer alguma coisa, senta-se, educada e pacientemente à nossa frente, implorando com o olhar - sim, aquele olhar tipo "Gato das Botas" - que partilhemos com ele . Qualquer coisa. Alguma coisa. Adora fruta, bolacha e macarrão cru - fica sorrateiramente à espreita todas as vezes que vamos colocar macarrão na panela, não vá algum pedacinho cair...- E cai mesmo, acho que de tanto que ele torce para que aconteça.
Apaixonei-me por ele logo no primeiro dia e ele, bebezinho, talvez sentindo o meu carinho por ele, seguia-me por todo o lado. Não podia nem ir à casa-de-banho que lá ficava ele a choramingar na porta. Hoje em dia, ainda me segue se vou estudar piano, por exemplo, e fica a chorar na porta se não o deixo entrar. À noite, quando percebe a nossa movimentação na sala e os diálogos, corre imediatamente para a porta do quarto do Mateus, e fica sentado a olhar para ela: já sabe que é hora de ir dormir e quer entrar para dar boa noite. Abrimos a porta do quarto, ele dispara para cima da cama e deita-se lá à nossa espera. Algumas vezes fica perto de nós enquanto lemos um pouco. Depois, o Mateus faz carinho nele, dá beijo de boa noite e ele volta para a sala. Connosco também tem sempre o mesmo ritual: espera que me deite e, só então, sobe também na cama e deita-se no meu lado esquerdo (em que a cama está encostada à parede) com o focinho em cima da minha barriga. Se, por acaso, não vai diretamente para o lado esquerdo, dizemos "Théo: lá no teu lugar" e ele, imediatamente, vai para lá. De manhã, se sente que o Sérgio se mexeu na cama e vai acordar, logo se levanta e abana o rabo como um tambor rápido e ritmado. Também adora deitar-se aninhado nas pernas do pai . Quando ouve o Mateus no quarto dele, sai em disparada para a porta para lhe dar bom dia. Adora brincar conosco no quintal com a bola dele - que, diga-se, já tem tantas partes mordiscadas que, tecnicamente, já não é exatamente uma bola - e, principalmente, com a nossa bola de futebol - que, definitivamente, já não é uma bola - que abocanha enquanto abana a cabeça vigorosamente de um lado para o outro - qual predador que exibe a sua presa nos dentes.
Quando ouve a campainha, ladra sem parar. Quando ouve as pessoas a falar na rua também. Sempre ladrou para a televisão desligada, pois vê nela o próprio reflexo. Não pode ver um papel ou guardanapo perdido por aí que logo os come como se se tratasse de um petisco saboroso. Não gosta de tomar banho e, principalmente, não gosta do secador. Também não gosta de ter o pêlo escovado - tenta, insistentemente, morder a escova, o que dificulta a nossa tarefa de o escovar.
É muito querido, companheiro e beijoqueiro. Mas não gosta de abraços nem apertões. Também não gosta que o Mateus se meta com ele quando está entretido a roer o seu osso. 
Sabe que o amamos. Sim, não tenho pudor de o dizer: amo o meu cão, nessa forma de amor única que existe entre nós, seres humanos, e eles, bichos de estimação (principalmente cães) que nos amam incondicionalmente e nos ensinam tanto sobre isso e também sobre a felicidade dos pequenos momentos partilhados. E se há coisa que eu gosto aqui no Brasil é que aqui eu não sou dona do Théo: aqui sou a mãe dele.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Eu e Tu


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Percebo agora que eras Tu. Eras Tu quando eu acreditava que podia transpôr qualquer limite do meu corpo a cada pirueta, mortal, acrobacia ou demonstração de flexibilidade. Eras Tu quando eu sentia a pura  liberdade de voar e fazer com o corpo o que pareceria impossível pelas leis da física. Eras Tu quando eu fechava os olhos na praia e me deleitava nas cores e formas que me apareciam. Eras Tu a cada queda, a cada derrota e eras Tu em cada conquista. Eras Tu em cada caminho não tomado, em cada pedra no caminho, a cada encontro e desencontro. Percebo agora. És Tu a cada harmonia e melodia que me arrepia a espinha. És Tu em cada livro, cada frase ou poema que me fala ao coração. És Tu numa bebida quente no inverno e numa bebida gelada no verão. És Tu no perfume das flores, no cheiro da maresia e da relva molhada. És Tu quando o meu cão deita o focinho no meu colo, no canto do sabiá e no vôo planado da gaivota. És Tu num bom filme ou obra de arte, e na energia inigualável de um evento desportivo ou de um concerto. És Tu no amor, na paixão e na amizade e és Tu na ausência deles. És Tu a cada pôr-do-sol ou lua cheia que me faz parar. És Tu nas cores do arco-íris, nas ondas do mar e na leve brisa que me acaricia o rosto nas tardes abafadas. És Tu no azul do céu, nas nuvens desenhadas e nas estrelas cintilantes. És Tu nos campos de girassóis, nos ramos das  árvores que dançam ao sabor da aragem, nas cores das folhas de outono e também na neve e na chuva que nos impressiona com a bela coreografia que faz no chão. És Tu nos vitrais da Igreja, no cume da montanha e no grão de areia. És Tu no sorriso do meu filho, nas horas de brinquedos espalhados no chão e és Tu nos desafios da convivência. És Tu no abraço de quem amamos, no encontro de almas e corpos, nas gargalhadas de doer a barriga, nas lágrimas de alegria e nas de tristeza também. És Tu na cereja doce, no pão quente com manteiga e no bolo acabado de fazer. És Tu no trabalho, no descanso, na dádiva e na perda. És Tu quando ajudamos e Tu quando somos ajudados. És Tu a cada coincidência, acaso e plano que não dá certo. És Tu nos acertos e nos erros (que são dádivas para nos fazer evoluir). És Tu na esperança e és Tu no desespero. És Tu na intuição, no sonho e na visão. És tu na inspiração e na respiração e no ténue e precioso espaço entre cada uma delas. És Tu na imensa escuridão dos olhos fechados e no silêncio que lá encontramos. És Tu o Começo e o Fim. És Tu Aqui, Ali, Agora, Antes e Depois. Percebo agora que eras Tu. És Tu. Percebo agora. Sou Eu.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Eu e as coisas que aprendemos com a Música

Quando estudamos um instrumento musical, além do prazer que, por si só, é fazer música, é sabido que, paralelamente, desenvolvemos várias habilidades. Há vários estudos científicos a respeito disso, do quanto o cérebro se desenvolve, de como a coordenação motora se aprimora, de como melhoramos a nossa capacidade de concentração, etc. Eu quero falar-vos de outras quantas que são apenas fruto da minha experiência pessoal. (E quem não é músico, mas é ou foi desportista de competição, encaixa-se igualmente na maioria dos itens.)

1- Paciência, perseverança e disciplina
    Quando alguém (que nunca estudou música) ouve uma música interpretada de forma sublime, provavelmente não imagina as dezenas, centenas de horas de trabalho que estão ali. As centenas, milhares de vezes que algumas passagens foram exaustivamente repetidas. Algumas passagens demoram semanas, meses, até se parecer com o que procuramos, até os dedos nos obedecerem. Algumas são tão difíceis que demora até acertarmos uma vez que seja. Depois demora a acertar a segunda. Aos poucos, vamos reduzindo a margem de erro. "Isto é impossível!" é um pensamento que nos ocorre algumas vezes. Mas não há impossíveis. As coisas só são impossíveis enquanto não tentámos o suficiente. Às vezes fazemos o nosso trabalho por dias, semanas, sem parecer que nada está a acontecer, que não há a menor evolução. E, um dia, acordamos, sentamo-nos ao piano, e tudo começa a fluir. Como se a semente do trabalho dos dias ou semanas antes começasse, naquele momento, a dar frutos. A música (e o desporto) ensinam-nos que temos que confiar no processo: fazer o trabalho, dar o nosso melhor, que o resultado aparece. Mesmo quando parece impossível, o difícil torna-se fácil (ou, pelo menos, acessível) se tentarmos o suficiente (com método, claro). Esse é outro ponto crucial: nada acontece sem disciplina. É preciso trabalhar com regularidade, empenho e dedicação. Mesmo quando não apetece Ou, aliás, principalmente quando não apetece. É nesses dias que ganhamos pontos na força de vontade. O meu professor costumava dizer que a Música não tem culpa se estamos ou não com ânimo, com problemas pessoais ou não. Que temos que nos fazer presentes, inteiros, deixar o resto de lado e entregarmos o trabalho - e mesmo nas coisas que não apetece tanto, como escalas, arpejos, exercícios técnicos, o nosso empenho e alegria de descobrir devem ser os mesmos.  Foi com o meu filho que melhor entendi esta lição...Uma criança não tem culpa se não estamos no nosso melhor dia: ela precisa de nós, inteiros, dedicados. Sempre. 

2 - Tudo começa na nossa mente
      Uma das coisas mais importantes para se conseguir uma boa interpretação (ou uma boa execução desportiva) é planear e optimizar cada gesto. Antes de se materializar, o gesto já está delineado, já existe na nossa mente. Cada gesto, por sua vez, serve um objetivo que o impulsiona. No caso da música: o gesto serve o som. O som, por sua vez, antes de se fazer ouvir, já existe, igualmente, em potencial, na nossa mente. Se fecharmos os olhos, conseguimos "ouvir" claramente o que queremos ouvir (de facto). É essa ideia que temos, que nos faz procurar o som e, é ao procurá-lo, que encontramos o gesto que melhor lhe serve. Se não temos essa projeção sonora idealizada na nossa mente (e o gesto que lhe corresponde), seremos sempre surpreendidos pelo som que produzirmos. Por outro lado, quando antecipamos cada som (na nossa mente), é como trazer para a esfera da realidade o som que já estava a pairar, em algum lugar, à espera de ganhar vida. De alguma forma, como se esse som já existisse, e nós apenas o tornamos...audível. Tudo começa com uma ideia. E, se pararmos para pensar, é assim em tudo na vida. Como alguém disse "As coisas são sempre criadas duas vezes: primeiro na mente, e depois na realidade física." Ou, como disse Einstein " A imaginação é mais importante que o conhecimento."

3 - Estar no momento presente
     Creio que, para além da meditação, as atividades que mais nos trazem para o momento presente são a música e o desporto. Imagine-se alguém enfrentar uma onda gigante da Nazaré e não estar focado no momento? Alguém estar em cima da trave para fazer um mortal e ter o pensamento no jantar? Alguém estar no palco a interpretar uma sonata de Beethoven com o pensamento nas contas que tem para pagar no dia seguinte? Estas atividades exigem foco total e, consequentemente, deixam-nos totalmente enraizados no Presente. Em qual momento do nosso dia-a-dia podemos dizer o mesmo? Momentos em que os pensamentos não vagueiam, em que o magnetismo do passado e do futuro não exercem influência sobre nós? Essa é a razão pela qual nos sentimos tão completos nesses momentos. Porque apenas Somos. Estamos ali, autênticos, despojados de quem fomos, de quem achamos que somos ou que deveríamos ser, do que temos ou não temos ou achamos que deveríamos ter. Fica apenas o nosso Ser, mais genuinamente autêntico e inequivocamente real. É por isso que tantos desportistas ou músicos sentem que ali, naqueles momentos, é onde se sentem mais felizes, é onde se sentem mais eles mesmos. E é. Isto porque estar focado ali, naquele instante, leva-os à sua verdadeira essência, liberta de quaisquer rótulos ou condicionalismos. Puro Ser. Indizível e indescritível. É por isso que muitos se sentem completamente perdidos quando deixam de fazer essas atividades: não encontraram outra forma de ter acesso a essa essência.
(P.S.Observem uma criança pequena a brincar, a descobrir o mundo: é uma das maiores aulas de como viver no Presente que podemos ter.)

4 - Há mais (para) além dos nossos sentidos
     A experiência de nos entregarmos totalmente a uma atividade, com a mente consciente no presente, não raras vezes, leva-nos a momentos de flow ou até de estados de consciência elevados. Todos nós, em algum momento da nossa vida, já vivenciamos isso. Momentos em que o tempo pára. Em que tudo parece deixar de existir. Sem tempo, sem espaço. É nesses momentos de flow que estamos totalmente alinhados com o nosso Ser e o que quer que estejamos a realizar, fazemo-lo no mais alto nível das nossas capacidades. (Se preferirem, chamem-lhe inspiração.) Esses momentos podem levar-nos a lugares que estão muito para além dos nossos sentidos. Quase podemos tocar o Divino... E essa é uma enorme motivação para continuar à procura - e não será essa a própria essência da Arte e de altas performances: encontrar o Divino em nós, ir além da nossa existência corpórea, das nossas (pretensas) limitações?


5 - Respirar fundo e voltar a tentar
     Muitas vezes deparamo-nos com um desafio no estudo. Tentamos uma, outra, outra e outra vez. A sucessão de erros e falhas começa a deixar-nos enervados. Quanto mais nos enervamos, menos acertamos. Ao longo dos anos, aprendi que, muitas vezes, a melhor forma de resolver um problema é afastarmo-nos um pouco, respirar fundo, tirar a mente do problema. Não raras vezes, percebi que, se parasse de estudar uma peça por um dia, no outro dia, subitamente, tudo parecia... menos complexo. Quando tiramos o nosso foco do problema, muitas vezes, aparece a solução. Como disse Einstein: "não podemos resolver os nossos problemas com a mesma mentalidade de quando os criamos". Em quantas situações na vida podemos aplicar este princípio...


6 - Só podemos corrigir aquilo que sabemos que está errado
     Muitas vezes acontece chamarmos a atenção do aluno (ou saltar à nossa atenção quando ouvimos uma gravação de algo que estamos a estudar) para determinado detalhe: uma nota que está mais forte do que devia, uma nota que está a deixar um buraco sonoro, uma imprecisão no ritmo ou mesmo um desequilíbrio sonoro entre as duas mãos. E eis que, a partir do momento em que a nossa atenção foi para aquele detalhe, ele salta-nos à vista como quando descobrimos os 7 erros numa charada: do nada, fica escancarado nos nossos ouvidos. Como nunca tínhamos percebido? E agora que já percebemos, parece-nos quase grosseiro e nem sempre é óbvia e imediata a forma de o resolver. Muitas vezes ouvimos do aluno: "É verdade!.. Agora percebi! Mas...não consigo fazer diferente." Nesse momento, respondo sempre "Que bom que já percebeste onde está o erro. É o primeiro passo para poder corrigi-lo. Enquanto achamos que está tudo bem, não há o que modificar e, consequentemente, não podemos melhorar." Então, procuramos as estratégias para solucionar o problema e uma parte essencial do nosso trabalho é, exatamente, perceber porque é que estamos a errar alguma passagem. Repetir vezes sem conta alguma coisa, quase como um autómato, nem sempre é a melhor estratégia. É preciso entender o que está a mais ou a menos. Podemos modificar alguma coisa no nosso gesto para melhorar o resultado sonoro? Mudar uma dedilhação? É a mão esquerda que está a atrapalhar, ou a direita? É uma questão de ritmo? Só quando percebemos isso, a verdadeira raíz do problema, é que realmente conhecemos o nosso erro e podemos corrigi-lo. Da mesma forma, só podemos mudar alguma coisa em nós a partir do momento em que admitimos e aceitamos que não é como gostaríamos que fosse e é bem mais fácil modificar algum comportamento, hábito ou forma de reagir quando percebermos de onde ele vem, qual a sua raíz.


7 - É possível mudar um hábito
  Todos conhecemos a velha máxima de "burro velho não aprende línguas". Aplicamos esta máxima não apenas a aprender qualquer nova habilidade mas também a todo o tipo de hábitos. Quantas vezes já ouvimos - ou nós mesmos já dissemos - "ah, eu sempre fui assim, não é agora que vou mudar." Por que não? Por que não agora? Não é fácil. Normalmente é até extremamente exigente. Mas é perfeitamente possível. Quando começamos a estudar uma peça, uma das primeiras coisas que definimos é a dedilhação. Nesse processo de escolher com qual dedo vamos tocar qual nota, vamos por tentativa e erro para perceber qual dedilhação melhor serve o que queremos fazer. Por vezes, em passagens difíceis, escolhemos uma dedilhação mas, a determinada altura do estudo, se os progressos tardam em aparecer ou se não estamos a atingir o nosso objetivo sonoro, optamos por mudar a dedilhação. Se, nesse momento, já tínhamos automatizado a dedilhação, ou seja, se os dedos já vão tocando "sozinhos", sem termos de racionalizar muito, a mudança é difícil. Em crianças, por exemplo, é uma tormenta tentar mudar uma dedilhação. Ouvimos logo "professora, já me habituei a fazer assim. Agora já não dá para mudar." (E, lamentavelmente, já lá está plantada a semente de "burro velho não aprende línguas".) Pois eu vos digo que não só dá, como muitas vezes, é a melhor coisa que podemos fazer. Quando nos decidimos por mudar uma dedilhação, passamos por um processo que exige a nossa total atenção. A mão quer fazer os movimentos A, B, C, mas a nossa cabeça, depois de ponderar as opções, escolheu o C, A, B. Cada vez que chegamos ali, a mão quer começar no A. A nossa cabeça assume o controle da situação e diz "Não, não é por aí." E coloca a mão no novo caminho escolhido. Podem ser poucas vezes ou dezenas de vezes. Pode resolver-se em um dia ou em vários. Depende muito. A única certeza é que a mudança de hábito acontece e a nova dedilhação torna-se tão automática e natural quanto a anterior. Mantendo a atenção e tomando o controle a cada vez que, automaticamente, caímos no mesmo hábito e substituindo-o, no mesmo momento, pelo que corresponde à nossa opção, será que este princípio não pode ser aplicado a qualquer coisa na vida, desde hábitos a traços de personalidade? Acredito que sim. Podemos escolher como reagir, como ser, como estar.

8- Resiliência
    Esta é uma palavra que nos últimos anos está em voga. Se procurarmos o significado literal, encontramos "propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica" Podemos dizer que resiliência é a nossa capacidade de "voltar ao jogo", a nossa capacidade de recuperação dos revezes. E como há revezes nesta atividade! Trabalhamos por meses para um único momento. As nossas horas de trabalho culminam em poucos minutos de música. Temos uma hipótese, uma só, para mostrar o que preparamos. Às vezes, esse momento é uma decepção enorme. Nada do que trabalhamos acontece. A memória trai-nos, os dedos embolam, a atenção dispersa, os nervos tomam conta. E, então, aprendemos a aceitar as coisas como elas são e a aproveitar esses momentos como enormes oportunidades para crescer e aprender. Por que as coisas correram como correram? O que podemos fazer de diferente para que, numa próxima oportunidade, a nossa performance seja melhor? Como ter a maturidade para aceitar que não estamos sempre no nosso melhor e isso não nos torna piores? Como não deixar que o ego nos enterre num poço escuro do qual sairemos com enorme dificuldade e dificilmente sem marcas? Como olhar as coisas pelo prisma do que podemos tirar de positivo, do que ganhamos e não do que perdemos?

9- Erros e acertos
     Em uma masterclass, ouvi um professor dizer: "os erros têm o valor que nós lhes damos: passa pelo erro como se nada fosse, e o público mal dará por ele; passa pelo erro a parar, corrigir, repisar, e o público sentirá o (enorme) peso que atribuímos a esse erro." É preciso desenvolver a maturidade necessária para lidar com o erro no momento da apresentação de forma a que nos mantenhamos centrados e não prejudiquemos a música. Da mesma forma, é preciso saber lidar com os acertos. Costumo dizer isso aos meus alunos: no momento da apresentação, não podemos deixar-nos levar pelas emoções de um erro ou de um acerto (numa passagem difícil e à qual precisamos dedicar mais tempo e trabalho). A música não pára, e ficar a pensar e lamentar um erro, é arriscar um outro erro em seguida; comemorar um acerto também tira o nosso foco e, não raras vezes, vem um erro tolo na sequência. Esta é uma lição que todos os grandes mestres nos transmitiram ao longo dos tempos: equanimidade da mente, ou seja, a capacidade de manter a tranquilidade, serenidade seja em que situação da vida for (boa ou má - ou melhor ainda, aceitar tudo apenas como "é", sem rotular de "bom" ou "mau"). Não sei por vocês, mas a mim parece-me um excelente objetivo de vida.

10 - O poder das crenças
     Há um fenómeno que acontece, por vezes, quando estudamos música. Por alguma distração ou precipitação, às vezes, lemos mal uma nota e introduzimo-la na nossa interpretação como se fosse a nota certa. O nosso ouvido vai-se habituando àquela sequência de sons. Para nós, aquela torna-se a sequência certa. Soa bem aos nossos ouvidos. Nem nos passaria pela cabeça que aquela não é a nota certa. Não questionamos. Aceitamos e acolhemos aquela nota como qualquer outra. De tal forma que, quando damos pelo erro e substituímos a nossa "nota certa" pela nota certa de facto, soa-nos...mal. A verdadeira nota certa não faz parte da sequência que interiorizámos. Ela soa-nos...errada. Quantas coisas na nossa vida aceitamos como certas sem nem questionar, porque sempre foi assim, ou "parece-nos" bem ou nos fizeram crer que é assim? Quem nos garante que a nossa crença é "certa" ou  mesmo "real"? Ainda assim, quanto das nossas crenças determina as nossas opções de vida? E, mais ainda, quanto das nossas crenças define o que consideramos ser o nosso limite? Ninguém conhece o seu próprio limite - quando achamos que atingimos um, logo outro surge no lugar. O que consideramos ser o nosso limite é aquilo que, inconsciente e erroneamente, nós próprios criamos. Na verdade, essa barreira estabelecida por nós ("isso não é para mim", "eu não consigo fazer isso", etc) não é real e só se torna real na medida em que acreditamos nela. A história de Roger Bannister é ilustrativa disso. Foi o primeiro homem a correr uma milha abaixo de 4 minutos, o que era considerado impossível para um ser humano e até perigoso para a saúde. No mês seguinte ao feito de Bannister, o record dele foi batido por outro atleta e, no ano seguinte, 15 outros corredores conseguiram quebrar essa barreira que se considerava, até Bannister, intransponível. Ao quebrar essa barreira mental coletiva, Bannister abriu as portas para que outros atletas, agora crentes de que era um objetivo possível, o atingissem também. Temos de analisar bem as nossas crenças e ver quais delas nos servem de âncoras. A partir do momento em que nos libertamos delas, nem o céu é o limite.

11 - O coração mostra o caminho
     Quando estudamos no Conservatório ou na Faculdade, temos um programa (de músicas) a cumprir. Nesse programa, nem tudo são peças que, imediatamente, são da nossa preferência. Algumas são, na verdade, o contrário: músicas com as quais não nos identificamos minimamente ou músicas que achamos realmente desinteressantes ou até mesmo feias. Ninguém consegue tocar uma música da qual não goste com um bom desempenho. Enquanto resistimos a gostar da música, não temos prazer a estudá-la, nem tão pouco conseguimos uma interpretação verdadeira, que convença o público. Para interpretar bem uma música, a nossa emoção, o nosso coração tem que estar lá. Aconteceu-me com uma peça contemporânea. Quando comecei a estudá-la parecia-me um puzzle. Não lhe encontrava sentido. Não lhe encontrava beleza. O meu professor orientou-me "procura algum elemento - harmonia, ritmo, melodia - da música com o qual te identifiques, qualquer um, e começa a colar a tua emoção ali". Comecei a abordar a música com curiosidade, a querer explorar alguma coisa mais ali. Já não me guiava pela resistência que tinha à música, mas por uma vontade de encontrar um elemento que me cativasse. Comecei a perceber a riqueza rítmica e a divertir-me com ela. Algumas passagens começaram a ter significado para mim. Depois comecei a entender a beleza e emotividade das frases. No final, foi um enorme desafio que me deu imenso prazer e que gostei imenso de tocar e de tentar mostrar ao público a sua beleza. Anos mais tarde, como já escrevi aqui, foi esse mesmo processo que me levou a perceber a beleza de São Paulo. A verdade é que a beleza está aí, por todo o lado, disfarçada de muitas e variadas formas: basta que saibamos como olhar para ela, e só de coração aberto isso pode acontecer. Como disse Carl Jung: aquilo a que resistimos, persiste.

12 - Fé
       O meu professor na Faculdade, quando estávamos a tocar as passagens mais difíceis e que mais receávamos, gritava entusiástico "Fé! Fé!" É preciso entrega para que as coisas aconteçam. Há um ditado árabe que diz "atira o teu coração para a frente e corre, logo em seguida, para o apanhares". Sem fé, ninguém  atira o coração ou, se atira, não o consegue agarrar de volta. Se nos encolhemos com medo, não somos bem sucedidos - como já escrevi neste post O público percebe o nosso constrangimento - e, tratando-se de um desporto, ceder ao medo é perigoso para a nossa integridade física. Temos de acreditar que estamos à altura do desafio, deixar as dúvidas de lado, e colocar-nos, inteiros, no que estamos a fazer. Nas palavras de Ricardo Reis:

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

13 - Somos parte de um todo
       Uma das experiências mais enriquecedoras e especiais que podemos ter na música é fazer música de conjunto. Se estamos em cima de um palco, como parte de um coro, a cantar com uma orquestra sinfónica, a experiência é ainda mais plena. Somos vários indivíduos mas, na verdade, somos uma única entidade. Vários elementos que formam uma única estrutura - como cada célula do nosso corpo forma um ser. O público não ouve cada um de nós em particular: ouve todos como um só. Mais do que isso: o público, cada um dos elementos ali sentados, sente-se parte de uma coisa só, uns com os outros que estão a vivenciar a mesma experiência enquanto ouvintes e também com todos no palco. A música une. Todos nós já sentimos a enorme e incrível energia que se sente ao estar numa sala de concertos (seja de que género de música for). É real. Para mim, é isso que somos enquanto humanidade: vários elementos que formam uma entidade bem maior do que temos noção. Há muito mais que nos une do que nos separa. Somos todos um.


sábado, 4 de abril de 2020

Pensamento do dia

Sempre se disse que os olhos são o espelho da alma, que sorrimos e falamos com o olhar. Que possamos desenvolver cada vez mais essa habilidade enquanto os nossos sorrisos e expressões estiverem tapados por um pedaço de tecido.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Eu e os outros (ou: Nós)

Hoje cortei as unhas com o corta-unhas. Todas elas. Os cinco dedos de cada mão. Estão todas cortadas (mais ou menos) por igual. Há cerca de uma semana atrás já tinha feito esse ritual. E na semana anterior também.
Vocês podem estar a perguntar-se o que isso tem de tão especial que mereça aqui registo. Bom,
a única vez em que isso aconteceu, com esta regularidade e consistência, nos últimos 25 anos foi há mais de 10 anos atrás. Foi logo na sequência de saber que estava grávida. A médica advertiu-me: "Joana, não pode roer as unhas agora. É perigoso para o bebé." Desde esse dia até ao nascimento do Mateus não roí uma única unha e sem o menor esforço ou dificuldade. Depois dele nascer, infelizmente, aos poucos, retomei esse péssimo hábito. Nos últimos 2 anos, diminuí bastante, mas não consegui livrar-me em absoluto. Não até agora. A ameaça do coronavírus paira sobre todos nós. Evitamos o mais possível tocar no rosto, que dirá roer as unhas? Sem hesitar mudei esse hábito. Mais uma vez, fi-lo sem o menor esforço, praticamente sem necessidade de me policiar. Não tenho medo de ficar doente por mim. (Ainda) Sou jovem e saudável e, por isso, acredito que não ficaria em maus lençóis - embora tenha consciência que, com este vírus, tudo pode acontecer. Preocupo-me, sim, pelos outros, pelas pessoas que me são próximas e a quem só desejo bem. Preocupo-me pelos outros que, conhecendo ou não, eu pudesse vir a prejudicar. Preocupo-me não por mim, mas pelos outros. Isso faz toda a diferença. Assim como há 10 anos me preocupava com o Mateus, o meu bebé. Quando pensamos nos outros, sem dúvida alguma, somos a melhor versão de nós mesmos. Somos mais fortes, mais focados, mais dedicados, mais gentis, mais completos, mais felizes. Ser altruísta é como ter um boomerang nas mãos: atiramos o melhor de nós e a vida devolve-nos no sentimento de realização e felicidade que isso nos traz. Quanto mais damos, mais temos para dar, porque quanto mais damos, mais somos. E quanto mais somos, mais queremos Ser. Nas palavras de Mahatma Gandhi

"O melhor modo de se encontrar a si mesmo é perder-se a servir aos outros." 

Acrescento: quando servimos aos outros, servimos a nós próprios, e daí não advém qualquer tipo de egoísmo, pois se  há coisa que já podemos concluir de tudo o que estamos a viver nestes tempos difíceis é que a grande maioria de nós andava a viver um grande equívoco: não existe (eu e) o outro. Estamos todos juntos neste barco. Somos todos parte da mesma coisa. Só existe "Nós". Estamos todos interligados. Sabem aquele velha história de uma borboleta bater as asas e, no outro lado do mundo, provoca uma tempestade? Pois é: no outro lado do mundo, alguém come alguma coisa e o mundo inteiro fica virado de cabeça para baixo. Ao seu lado alguém espirra e outro alguém fica doente. Alguém usa uma máscara e protege vários de adoecer. Alguém se faz presente, mesmo à distância, e faz-nos sorrir. Alguém fica em casa e garante a segurança de todos. Todos. Estamos todos juntos nisto. Somos um imenso organismo de mais de 7 biliões de elementos que, mais do que nunca, tem de agir em consonância. 
Que este seja um tempo de acordar, de elevar a nossa consciência e que cada um de nós possa encontrar-se. Em pequenos gestos. Em grandes sacrifícios. (Nós) Vamos ficar todos bem.


sexta-feira, 6 de março de 2020

Nós e os bastidores da Gulbenkian

A Sala São Paulo é um dos meus lugares preferidos em São Paulo. Além da sala de concertos ser incrível, com uma acústica muito especial - e a OSESP é uma excelente orquestra -, o edifício é muito bonito, uma estética impressionante, num estilo neoclássico, que mistura elementos do passado com elementos modernos.
Ontem fiz a visita guiada ao edifício. É um programa que vale a pena fazer. Já no final da visita, dentro da sala de espetáculos, a guia explicava o funcionamento de várias coisas, entre elas, um estrado que sobe e desce no palco e que serve para elevar o piano de cauda. "Lá em baixo, existe uma sala especial, de manutenção, onde guardamos diversos instrumentos e materiais." No mesmo instante, veio à minha memória uma sala idêntica em que estive há muitos, muitos anos atrás - diria que cerca de 25 anos. A memória é uma coisa curiosa: lembramo-nos das coisas não exatamente como elas aconteceram, mas de acordo com a narrativa que fomos construindo com o passar do tempo. Se é verdade que "quem conta um conto, acrescenta um ponto", nós mesmos, frequentemente, acrescentamos ou subtraímos pontos nas histórias que contamos a nós mesmos. A memória que tenho daquele dia é cheia de espaços em branco. Lembro-me daquele dia como me lembro do que sonhei ontem: algumas partes com mais nitidez, outras nebulosas e, de um modo geral, cheia de cortes abruptos entre uma cena e outra. (Aliás, essa semelhança entre o que sonhamos/imaginamos e o que realmente vivenciamos é muito interessante: a mente recorda da mesma forma aquilo que vivemos e é real, digamos assim, e aquilo que sonhamos ou planeamos para o futuro... Como dizia Shakespeare "Somos feitos da mesma matéria dos sonhos".)
Naquele dia, o que tenho a certeza é que estávamos na Gulbenkian. Era a 8ª Sinfonia de Mahler e nós, enquanto Coro Infantil, participávamos apenas em alguns momentos da obra, por isso, não ficávamos o tempo inteiro no palco: aguardávamos pela nossa participação em uma sala - acho que a sala em que o Coro Gulbenkian normalmente ensaiava - com as queridas funcionárias Isabelita e a Guarete. Não sei quem teve a brilhante ideia mas, a dada altura, achámos que era interessante dar uma voltinha por ali, explorar a Gulbenkian. A sala tinha tantas crianças cheias de energia - coitadas da Isabelita e da Guarete - que, nem deram por sairmos de lá. Não me lembro exatamente qual era o grupo. Acredito que as de sempre: eu, Ana, Andrea, Inês, Margarida, Mariana, Raquel, Rita F., Rita G. Tão pouco me lembro que caminho fizemos ou quem liderou as "tropas". Sei que fomos andando por portas e corredores e, inclusivamente, tenho uma vaga ideia de termos andado de gatas num corredor para não sermos vistas! Tanto andamos que chegamos a uma sala que parecia uma espécie de arrecadação e, segundo o que me lembro, tinha vários instrumentos de percussão. Ali andávamos a explorar o espaço e alguém comentou algo como "Já repararam que se ouve uma música por aqui?" Ouvia-se, ao longe. Até que... algum tutti da orquestra que fez tudo ressoar ali nos despertou "Estamos em baixo do palco!!!" Corremos dali. Andamos vá imaginar-se por onde, e recordo-me depois de estarmos sentadas a conversar numa sala ampla, com pouca luz e vazia. Seria algum espaço do Museu Gulbenkian? O que conversámos? Não faço ideia. Quem achou que era melhor voltar? Muito menos. Quem sabia como encontrar o caminho de volta à sala onde estavam todos os nossos colegas? Não sei, mas chegamos a tempo e horas. Mais uma vaga ideia: de algum colega (talvez o André G. ou o Nuno L.) ter perguntado por onde tínhamos andado e, após a nossa explicação, ter comentado "Vocês são malucas." E fomos mesmo, mas depois de tanta inconsciência, entramos no palco com todos eles e vivemos o que, tenho a certeza, foi uma das experiências mais marcantes das nossas vidas: a parte final da "Sinfonia dos Mil" de Mahler. Se me recordo com exatidão daqueles minutos? Não, mas guardo comigo até hoje a emoção de fazer parte daquela imensa massa sonora. Somos privilegiados por ter vivido aquela experiência. Aquela sensação incrível de ser parte de uma coisa maior. As memórias que mais nos acompanham são aquelas que estão carregadas de emoção e, acredito que todos nós, quando ouvimos aquele "Alles Vergängliche ist nur ein gleichnis" de Goethe, no final da Sinfonia, nos arrepiamos até à medula. Curiosamente, essa frase pode ser traduzida como:

Tudo o que passa
É mera aparência

Ou:

O que não é eterno
É apenas uma alegoria.


Tudo aquilo é eterno para nós.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Eu e o medo

Sou apaixonada por ginástica artística desde que me entendo por gente. Acho que as minhas memórias mais recônditas são relacionadas à ginástica: com 2 ou 3 anos de idade, vidrada na televisão a ver os campeonatos. Depois de anos a pedir aos meus meus pais, prestes a completar 6 anos comecei, finalmente, a praticar. Era a minha grande paixão. Adorava ir para os treinos. Aliás, o pior castigo que me podiam dar era proibir-me de ir ao treino.
Nos 7 ou 8 anos em que fui atleta de competição, fui colecionando preciosas lições que trago comigo para a vida. Uma das principais é sobre o medo. Lembro-me claramente de, nos primeiros anos da ginástica, não sentir medo de nada. Absolutamente nada. Tudo era uma aventura, descoberta, tudo era novidade, cativante. A treinadora explicava o movimento novo que íamos fazer e nós, pequenas e inconscientes, atirávamo-nos sem pestanejar! Não havia hesitações. Apenas um enorme entusiasmo de fazer uma coisa nova, impensável até àquele momento. "Vamos fazer pirueta." O nosso pensamento era "Boa!" Tudo o que fosse novo, ousado, era simplesmente incrível para nós. O problema surge quando os pensamentos começam a trair-nos. Em algum momento, quando a treinadora explicava o que íamos fazer, apesar de me sentir motivada para fazer uma coisa nova, também sentia um friozinho na barriga e várias imagens surgiam, inadvertidamente, na minha cabeça de tudo o que podia correr mal "E se o pé escapar? E se não subir o suficiente? E se?.. E se?.." Pior ainda era quando caíamos mal a fazer algum movimento. Depois de verificar se não nos tínhamos magoado, a primeira coisa que nos diziam era " Vai lá e faz novamente." Logo em seguida. Sem nos dar muito tempo para pensar. Mas como os pensamentos ficavam velozes nesses momentos! Lá vinham todos aqueles cenários desfavoráveis. Tremia por dentro. Oscilava entre "Vamos lá: eu sou capaz!" e "Eu não consigo. Não consigo." E então vem a segunda parte da lição: realmente o medo tinha de ser vencido ali, na mesma hora. Quanto mais deixava passar, mais difícil ficava, mais o medo se instalava em mim e mais força eu tinha de ter para o vencer. Lá ficava eu, a ganhar coragem, naquele "vou" "não vou".  No momento em que, finalmente, me decidia por fazer o que tinha de fazer, enfrentava a última parte da lição: quando decidimos que vamos, vamos! Todas as hesitações ficam para trás. Só há um caminho possível: foco total na direção do nosso objetivo. Não dá para tentar fazer um mortal para a frente na trave e arrependermo-nos a meio do caminho. É queda certa e, provavelmente, bem feia.Tal como acontece quando estamos a preparar uma música nova. Há passagens que nos desafiam, que são tecnicamente difíceis. Quando, na música, começamos a aproximar-nos daquelas passagens, a mente já começa a vagar a 300 km/h. Uma hesitação, um momento de dúvida e teremos a passagem "suja". Se nos "encolhermos", a passagem pode até não ter erros, mas não cativará ninguém que nos ouça. É preciso esquecer o medo e colocar-se inteiro ali, com fé, como dizia o meu professor. Imaginem que, num parque aquático, subimos lances e lances de escadas para descer por um escorrega radical. Chegamos lá a cima, olhamos para baixo, e hesitamos. Ainda assim, optamos por escorregar mas, no meio do caminho, arrependemo-nos e começamos a tentar segurar-nos de qualquer forma, parar. Impossível! Tentar parar num situação dessas só vai ter resultados nefastos para nós. Por isso, quando decidimos que vamos, vamos com tudo, com todas as nossas forças! Deixamo-nos ir. Quantas conquistas alcançamos ao vencer os nossos medos naquele ginásio? Quantas conquistas alcançamos na vida por vencer os nossos medos e inseguranças? Não são os nossos medos que nos definem, mas a nossa coragem e audácia para os ultrapassar. Essas, sim, vão definir até onde podemos chegar. E a verdade é que ninguém conhece os seus limites até os testar. Teste-os novamente e encontrará novos limites, um pouco mais além. Logo ali, depois do medo, está a nova saída da trave, a nova pirueta no solo, o novo emprego, a nova relação, o filho, a experiência inesquecível de pular de paraquedas, subir uma montanha ou mergulhar no oceano, a nova manobra no skate, a nova amizade, o perdão, a nova receita, a tão esperada viagem, o livro, a palestra, o filme, o curso, o blog, o novo visual, a música. Logo ali, depois do medo, está a Vida. E é sempre o amor que nos leva até lá.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Eu, Star Wars e Yoga

Há muito tempo atrás, numa galáxia muito, muito distante...surgiu uma das mais emblemáticas sagas de todos os tempos. Dividida em três trilogias, Star Wars tem uma legião de fãs, de todas as gerações e pontos do globo. Eu sou, declaradamente, uma delas. Vi todos os filmes da saga. Mais de uma vez. A maioria deles nem sei precisar quantas vezes. Eu sou aquela fã que se arrepia só de ouvir os primeiros acordes da música principal ou do tema da Força. "May the Force be with you" foi, não raras vezes, a frase utilizada por mim e alguns amigos igualmente fãs de Star Wars para desejar sorte para alguma coisa. Sempre me identifiquei com esse conceito da Força: a energia que cria todas as coisas, que permeia tudo o que nos rodeia e mantém tudo em equilíbrio. No fundo, acredito que qualquer pessoa no planeta abrace esta Verdade. Alguns chamam-lhe Deus, outros Leis da Física, outros Destino, outros Energia.

"Minha aliada a Força é, e poderosa aliada ela é. A vida a cria, e a faz crescer. Sua energia nos cerca e nos une." (Yoda)

Sempre achei o Mestre Yoda um personagem incrível! Admirava a sua sabedoria, auto-controle, serenidade. E o que dizer dos outros Jedi? Qui Gon, Obi Wan, Anakin e Luke Skywalker e, na mais recente trilogia, a Rey. Cada um deles com as suas habilidades, pontos fortes e também com as suas fraquezas, lidando com os seus medos e desafios pessoais, gradualmente ficando mais fortes, sábios, à medida que a sua conexão com a Força se intensifica. Também não podemos esquecer os personagens icónicos: Princesa Leia - uma das minhas preferidas, pela sua coragem, personalidade forte mas, ao mesmo tempo, enorme sensibilidade - e Han Solo, Chewie, C3PO, R2D2, BB8, entre tantos, tantos outros. E, claro, os principais e inesquecíveis vilões: Darth Vader, Imperador e Kylo Ren.
Literalmente há décadas que sou fã de Star Wars e acompanho a saga. Os Episódios IV, V e VI, vi na sala de casa, na saudosa videocassete, com o meu irmão Pedro. Os Episódios I, II e III vi no cinema também com o meu irmão e amigos. Os episódios VII, VIII e IX, vi no cinema com o meu filho.
Quando vi o Episódio VIII no cinema, como a maioria naquela sala de cinema, fiquei impressionada com o confronto entre Kylo Ren e Luke Skywalker. Aliás, nessas cenas eu presenciei algo inédito na minha vida: uma plateia de cinema aplaudir uma cena de filme! Principalmente no desfecho, quando percebemos - quem não quer spoiler pare de ler agora - que Luke nunca esteve ali: estava em meditação na ilha, e projetou um outro corpo para ajudar a Resistência contra Kylo Ren. Depois desvanece-se no ar, tal como seu Mestre Obi Wan Kenobi tinha feito no passado. Impossível ficar indiferente aos feitos dos Jedi! São coisas fantásticas, sobre-humanas, que entusiasmam a plateia que, ao ver essas cenas, pensa "Esses Jedi são incríveis!.." Afinal, os Jedi lêem pensamentos, conseguem mover as coisas sem lhes tocar, alguns conseguem vislumbrar acontecimentos que estão a ocorrer em outros lugares da galáxia ou no futuro só através do seu pensamento e intuição, movem-se com extrema rapidez, flexibilidade e agilidade, conseguem comunicar-se por telepatia, conseguem curar os outros apenas ao tocar-lhes ou até ressuscitá-los e voltam dos mortos como seres iluminados para continuar a guiar os seus discípulos.
Mas...entre ver o Episódio VIII pela primeira vez e pela segunda vez, eu li vários textos de sabedoria oriental, nomeadamente da tradição do yoga. Ao ler, por exemplo, "Autobiografia de um Iogue", de Yogananda, no capítulo "O santo dos dois corpos", eu pensei "Meu Deus, aquela cena do Luke Skywalker não é uma coisa totalmente original e meramente de ficção? É isto aqui, tal e qual! Tenho a certeza que este livro é um dos preferidos de George Lucas!"

"- Senhorzinho, não se preocupe. O homem a quem veio procurar estará aqui dentro de meia hora.
- O iogue estava lendo meu pensamento: uma empresa não muito difícil naquele momento!
Novamente ele se interiorizou num silêncio impenetrável. Meu relógio indicava que trinta minutos tinham decorrido quando o swami se levantou.
- Penso que Kedar Nath Babu está chegando à porta da rua disse ele.
Ouvi alguém subindo as escadas. O assombro e a incompreensão mesclavam-se de repente em
mim; meus pensamentos eram velozes mas confusos. “Como é possível que o amigo de meu pai tenha sido intimado a comparecer aqui sem que um mensageiro o fosse chamar? O swami não falou com ninguém desde a minha chegada!”
Sem cerimónia, abandonei o quarto e desci as escadas. A meio caminho, encontrei um homem magro, de pele clara e de média estatura. Parecia estar com pressa.
- O senhor é Kedar Nath Babu? - A excitação dava colorido à minha voz.
- Sim. E você não é o filho de Bhágabati que está esperando por mim? - Ele sorriu amigavelmente.
- Senhor, como lhe ocorreu vir aqui? - Eu sentia frustração e ressentimento por não poder explicar sua presença.
- Hoje, tudo é misterioso! Há menos de uma hora atrás, eu saía de meu banho no Ganges, quando Swami Pranabananda se aproximou. Não tenho a menor ideia de como soube que eu me achava ali, àquela hora. Disse-me ele:
" O filho de Bhágabati está à sua espera em meu apartamento. Pode vir comigo." Concordei de bom grado. Caminhamos lado a lado, mas logo o swami, usando sandálias de madeira, tomou estranhamente a dianteira, apesar de eu ter, nos pés, sapatos reforçados para andar pelas ruas.
- Quanto tempo levará para atingir minha casa? - Pranabananda parou de súbito, para fazer-me esta pergunta.
- Cerca de meia hora.
Ele me olhou enigmaticamente.
- Devo deixá-lo para trás; nos encontraremos em minha casa, onde o filho de Bhágabati e eu estaremos à sua espera.
- Antes que eu pudesse replicar, adiantou-se velozmente e desapareceu entre a multidão. Vim para cá tão depressa quanto me foi possível.
Esta explicação apenas aumentou meu assombro.
- Não posso crer em meus ouvidos! Será que estou ficando louco? O senhor encontrou
Pranabananda numa visão ou realmente o viu, tocou-lhe a mão e escutou o ruído de seus passos?
- Não sei onde está querendo chegar. - Ele ficou rubro de indignação. - Não lhe estou mentindo.
Não pode compreender que só por intermédio do swami eu podia saber que você me esperava neste lugar?
- Pois eu lhe asseguro que esse homem, Swami Pranabananda, não se afastou de minha vista um só instante desde que entrei aqui há uma hora atrás. - E sem mais reflexão, contei-lhe toda a história, repetindo a conversação que tivera com o swami.
Seus olhos abriram-se desmesuradamente.
- Estamos vivendo nesta era materialista ou estamos sonhando? Nunca esperei testemunhar tal milagre em minha vida! Julguei que este swami era um homem comum e agora descubro que pode materializar um corpo extra e operar com ele!
 Entramos juntos no quarto do santo. Kedar Nath Babu apontou com o dedo para os sapatos sob o estrado.
- Olhe, são as mesmas sandálias que ele usava no ghat - segredou-me. - E vestia apenas uma
tanga, exatamente como agora.
Quando o visitante se inclinou diante dele, o santo voltou-se para mim com um sorriso divertido.
- Por que ficou espantado com tudo isto? A sutil unidade do mundo dos fenómenos não se acha oculta aos verdadeiros iogues. Eu vejo e converso instantaneamente com meus discípulos na distante Calcutá. Eles também podem transcender à vontade qualquer obstáculo de matéria densa."
(excerto de Autobiografia de um Iogue, de Yogananda)

Fiquei impressionada com esta leitura! Como assim aquela cena do Luke Skywalker materializar um outro corpo, denso, que os outros podiam tocar e sentir, aconteceu realmente, algures na Índia, e está relatada num livro de 1946, 31 anos antes de ser lançado o primeiro filme de Star Wars?! Não só no relato deste excerto, mas em outros momentos do livro são descritas situações idênticas, com pessoas diferentes. Aparentemente, transcender a matéria densa é uma habilidade não apenas dos Jedi, mas de quem se dedica a desenvolvê-la. Nas palavras do Mestre Yoda, também se fala de transcender a matéria:

"Luminosos seres somos nós, não essa rude matéria. Precisa a Força sentir à sua volta, aqui, entre nós, na árvore, na pedra em tudo, sim."

No mesmo excerto de Yogananda, lemos que o swami leu os pensamentos dele, facto descrito inúmeras vezes, em diversas situações e por diferentes pessoas ao longo do livro.

"A intuição de Sri Yukteswar era penetrante; descurando as formulações ouvidas, ele comumente respondia aos pensamentos inexpressos de alguém." ("Autobiografia de um Iogue")

Quem lê "Autobiografia de um Iogue" e é fã do universo de Star Wars, fica realmente impressionado com a semelhança entre as habilidades dos Jedi e as habilidades dos Iogues descritas no livro que, destaque-se, não é um livro de ficção. A primeira vez que tentei ler este livro, não passei das primeiras páginas, precisamente por essa razão: perguntava-me constantemente como era possível que tudo aquilo não fosse ficção? É muito fácil começar a ler este livro e voltar a colocá-lo na estante: tudo parece roçar o absurdo. A verdade é que alguns anos depois da primeira tentativa frustrada, tornou-se um dos meus livros preferidos. Leio-o todos os anos. (A título de curiosidade: Steve Jobs providenciou para que todos os que estiveram presentes no seu funeral recebessem uma cópia do livro, era o único livro no seu I-Pad e leu-o todos os anos da sua vida, entre os 19 anos de idade até à data da sua morte.)

Não é apenas em Autobiografia de um Iogue que há sugestões do Universo Star Wars. O Bhagavad Gita é um dos principais textos sagrados hindus. Data de cerca de 4000 anos antes de Cristo. Nele se lê:

"A mente funciona como um inimigo para aqueles que não a controlam.
Yoga é um método para restringir a turbulência natural dos pensamentos. Estes, se não forem
dominados, impedem todos os homens de vislumbrarem sua verdadeira natureza, que é Espírito. Os pensamentos da maioria das pessoas são inquietos e caprichosos; é patente a necessidade da ioga: a ciência do controle da mente. O antigo ríshi Patanjali define ioga como “neutralização das ondas que se alternam na consciência."

Este é, desde logo, um ponto em comum com Star Wars: o treino dos Jedi consiste, essencialmente, no conhecimento da mente e no controle das emoções. 
No treinamento de Luke Skywalker, Yoda diz-lhe:

"Só é diferente na sua mente. Você precisa desaprender o que aprendeu." 

"Não confie nos seus olhos: eles podem enganá-lo" (Obi Wan Kenobi)

"Controle, controle! Você precisa aprender a se controlar."
"Luke: Mas eu não acredito! 

 Yoda: É por isso que você fracassa."

Mais uma vez, em Autobiografia de um Iogue, lemos:
"Na realidade, foram seus pensamentos que o fizeram sentir-se alternativamente fraco e forte. Você viu como sua saúde acompanhou com exatidão suas expectativas subconscientes. O pensamento é uma força como a eletricidade ou a gravitação. E a mente humana, uma centelha de consciência omnipotente de Deus. Posso mostrar-lhe que acontece imediatamente tudo quanto a sua poderosa mente acredita com muita intensidade."

Além destes aspetos, quando vemos Star Wars com atenção, reparamos que é em estado meditativo que os Jedi acessam o seu poder, pois é através da meditação que se conectam à Força. O próprio treinamento que Yoda aplica a Luke Skywalker é, curiosamente, bem sugestivo das posições de Yoga (posições de equilíbrio exigentes), e no começo do episódio IX, o treinamento de Rey também é de olhos fechados, em meditação e entoando o que se poderia chamar de mantra - técnica de meditação em que focamos o pensamento em um som ou frase, abstraindo dos sentidos. Pessoalmente, também acredito que a proximidade fonética e de grafia entre Yoda e Yoga não é ocasional.

Outra coisa que me impressionou é a proximidade da essência do Código Jedi com a essência dos textos sagrados indianos. No Código Jedi lê-se:

Não há emoção, há paz.
Não há ignorância, há conhecimento.
Não há paixão, há serenidade.
Não há caos, há harmonia.

Não há morte, há a Força.

"Um Jedi usa a Força para sabedoria e defesa, nunca para o ataque" (Yoda).

No seu livro, Yoga Sutras, Patanjali define um caminho para o praticante do Yoga atingir a auto-realização. Os primeiros passos são os chamados Yamas (não-violência; veracidade ou não mentir, palavras e ações; não roubar, não cobiçar ou invejar bens ou conquistas de outrem; continência sexual, entendida como intenção de formar relacionamentos que nos façam compreender as verdades mais nobres e a não possessividade ou o não cobiçar, traduz-se em generosidade e desapego) e Nyamas ( purificação, que inclui alimentação vegana, exercícios de purificação orgânica e manter limpo o ambiente em que se vive, e purificação  interna que consiste na eliminação das impurezas do pensamento; o contentamento, consiste em cultivar um estado interior de permanente alegria, independentemente das circunstâncias externas; estudo da metafísica do Yoga e de si próprio e devoção, consagração, auto-entrega e submissão a Ishvara - Senhor, Deus pessoal). Yamas e Nyamas nada mais são do que um código de conduta - uma espécie de 10 Mandamentos. Ao segui-lo, o praticante elimina parte dos conflitos com os outros e com o mundo exterior e, por consequência, diminui o seu conflito interior, o que o ajuda a progredir na sua senda espiritual.
Ainda no Bhagavad Gita, lê-se:

"Tudo o que vive, vive para sempre. Somente o invólucro, o que é perecível, desaparece. O espírito não tem fim. É eterno. Imortal. (...) A essência não pode morrer."

"Na verdade, não há neste mundo purificador comparável ao conhecimento. Aquele que atingiu a perfeição pela Yoga, irá encontrá-lo dentro de si mesmo no decorrer do tempo. (...) Atingindo o conhecimento, logo alcançará a paz suprema."

Também Yoda se refere à importância do conhecimento:
"Em um estado sombrio nós nos encontramos... um pouco mais de conhecimento iluminar nosso caminho pode."

Tanto na filosofia oriental como em Star Wars, o desapego assume uma enorme importância. O desapego surge como equanimidade na mente: não nos deixamos afetar negativa nem positivamente pelo que acontece à nossa volta. Desapego não significa ausência de emoções, mas que esses sentimentos não nos subjugam. Aquela máxima de "possuímos as coisas, mas elas não nos possuem."

"Ao contemplar os objetos a eles nos apegamos, do apego vem a luxúria, e da luxúria a ira." (Bhagavad Gita)

Reparem como o Yoda tem uma frase idêntica, na sua essência:
"O medo leva à raiva, a raiva leva ao ódio e o ódio leva ao sofrimento."

E neste mesmo contexto surge outra das famosas frases de Yoda:
"Treine a si mesmo a deixar partir tudo que teme perder."


Também Yoda se refere à morte:A morte é parte natural da Vida. Regozije-se por aqueles que se uniram com a Força. Não lamente por eles. Não sinta falta deles. O apego leva à inveja. À sombra da cobiça, isso sim.

Finalmente, há um conceito central na filosofia hindu que encontramos também na sabedoria Jedi: Maya. Para os hindus, esta realidade em que vivemos não é o mundo real. Tudo aqui é uma mera ilusão, que a mente e sentidos de cada um cria e reflete. (Uma espécie de Alegoria das Cavernas de Platão ou, para quem é fã de outra saga que eu adoro: Maya corresponde ao Matrix). É a isso também que os Jedi se referem:

"Muitas das verdades que temos dependem de nosso ponto de vista."
Obi Wan Kenobi

"O seu foco determina a sua realidade."
Qui Gon Jinn


Como o meu foco, neste momento, está em crescimento pessoal e espiritual, talvez eu veja, na minha realidade, que Star Wars é um excelente compêndio dos princípios filosóficos orientais presentes no hinduísmo e budismo. Com toda a certeza, desafio quem é fã de Star Wars a ler "Autobiografia de um Iogue". De mente aberta. Em vários momentos, vai relembrar cenas dos filmes, frases dos personagens, habilidades dos Jedi.
Concluo com uma frase do Bhagavad Gita que eu diria que é uma bela definição de Força:
"Quem se aplica de coração à Yoga, vê o espírito em todos os seres e todos os seres no espírito, pois por toda a parte percebe a identidade." 


Que a Força esteja com vocês.