sexta-feira, 18 de agosto de 2023

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 Uma aluna minha está a estudar uma música que conhece muito bem de ouvido. Algumas partes já estão fluentes e no andamento certo. Ainda assim, ela diz não conseguir reconhecer a música quando a toca. Eu, a ouvir de fora, reconheço claramente. Essa é uma das dificuldades de tocar um instrumento: somos, ao mesmo tempo, quem faz e quem observa, quem executa e quem escuta. O mesmo acontece na prática de yoga: somos aquele que pratica e aquele que percebe as sensações que a prática gera. Essa tarefa nem sempre é fácil. No caso da minha aluna, embora ela esteja a tocar tudo corretamente, ainda está muito compenetrada na técnica, em cada movimento, cada nota que tem que tocar. A mente dela está absolutamente focada na mecânica do processo. Isso faz com que ela não tenha, ainda, criado o espaço necessário para se ouvir. É preciso criar uma certa distância entre a técnica do que estamos a fazer e a sensação que nos causa observar o que é feito. Se essa distância não existe, ficamos totalmente embrenhados no "fazer" e não nos permitimos "perceber". E isso é uma belíssima metáfora para a nossa mente: é preciso criar uma certa distância entre nós e os nossos pensamentos para que, realmente, nos possamos ver e perceber a nós mesmos. É preciso criar uma certa distância entre nós e os nossos problemas para conseguirmos ver novas possibilidades de solução. Muitas vezes estamos tão ocupados com tantos afazeres e preocupações e ruminações e dúvidas, tão identificados com tudo isso, que não criamos essa abertura para nos observarmos, para nos conhecermos. É preciso espaço para nos ouvirmos.


159-365

Desde os meus 16/17 anos, sempre gostei de fazer uma mudança ocasional e radical no corte de cabelo. De tempos a tempos, corto-o bem curto. Depois fico anos seguidos com ele longo. Há 14 anos que não fazia essa mudança e, na semana passada, resolvi que estava na hora. Não olho tantas vezes assim para mim própria durante o dia, por isso, só passado mais de uma semana é que comecei a habituar-me ao novo visual. Até então, cada vez que me via ao espelho, ficava surpresa. Não era uma reação negativa, de não gostar do visual, mas apenas de estranheza, de não me reconhecer ali. Os outros - família, conhecidos, alunos - também estranham. Habituamo-nos tanto a determinada imagem que começamos a identificar-nos com ela. E essa é uma das melhores partes de mudar de visual: "despirmo-nos" um pouco de nós mesmos, da imagem que temos e têm de nós e, com isso, abrimos espaços novos. Porque a mudança implica abdicar de uma imagem que tínhamos (ou pensávamos ter) e abraçar uma nova, por mais estranheza que nos cause no começo. A mudança envolve esquecer quem achávamos ser para podermos descobrir quem poderemos ser. A Natureza mostra-nos isso constantemente: a lagarta que abre as asas de borboleta, a cobra que muda de pele, a árvore que se despe para florir novamente, o girino que se transforma em sapo, a semente que rasga a casca para germinar. Nem sempre é tão fácil como cortar o cabelo: às vezes mudar é doloroso, implica coragem, um salto no escuro, um salto de fé. Às vezes caímos, perdemo-nos mas, do outro lado, chegamos mais inteiros, mais nós mesmos, porque a cada vez que ousamos, cai mais uma "casca" que nos enclusurava em quem não somos. Mudar é criar espaço para habitar a própria pele, para ser exatamente quem escolhemos ser.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

A matemática da Existência

 


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Quando praticamos ginástica artística, uma coisa essencial é aprender a cair. Ali, ninguém tem a ilusão de que não vai cair. Sabemos que as quedas fazem parte do treino, e fazem parte da aprendizagem. Aceitamos a queda como parte integral do processo. Também sabemos que, mesmo depois de ter dominado um exercício, a queda pode acontecer. Não somos infalíveis. A única coisa da qual temos medo é de "cair mal". Na esmagadora maioria das vezes, a queda acontece de uma forma totalmente controlada. É primordial que essa segurança na hora de cair exista. Saber como virar, como enrolar, como se proteger, ter capacidade de reação para improvisar. E, mesmo quando a queda acontece de forma a que nos magoamos, é importante que não nos deixemos paralisar pelo medo. Não podemos deixar que uma queda nos impeça de continuar.

Esse é um ensinamento que podemos levar para a vida: desapegar da ilusão de que não iremos sofrer quedas no caminho mas, ao invés, aceitar que as quedas fazem parte do processo. Aprenda a cair. Sem estrondo, sem dor. E, se "cair mal", não duvide da sua capacidade de se reerguer, se curar e continuar a tentar. As quedas podem abalar-nos, mas não deixe que nenhuma queda tenha o poder de o derrubar. 

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

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Há uns meses atrás, em conversa com uma querida amiga, deparei-me com um conceito muito interessante sobre o qual nunca tinha reflectido: tudo existe entre contração e expansão, tudo pulsa. Depois de uma expansão, vem sempre uma contração. O crescimento não é um caminho linear, acontece entre estes passos para a frente e para trás, entre novas formas de viver e novos questionamentos, novas descobertas e novas dúvidas. Tudo pulsa. O coração a bater, o pulmão a inflar e desinflar. Também o ciclo de vida das estrelas: a força gravitacional faz com que as moléculas gasosas se atraiam (contração); depois, a temperatura vai aumentando e liberam-se mais gases, o que expande a estrela; depois de consumido todo o combustível, a estrela resfria e diminui de tamanho (contrai-se novamente). Da morte da estrela pode surgir uma nova nebulosa e um novo nascimento de estrela. Para conseguirmos pular alto, primeiro encolhemos o corpo, e para mergulhar longe na água ou sair a correr explosivamente, primeiro agachamo-nos. As aves abrem e fecham as asas para voar. O útero quando dá à luz: contração e expansão, contração e expansão. Os próprios ciclos da História: Impérios que se expandem até ao seu colapso. O Universo surgiu de uma incomensurável energia condensada (contraída) que, após uma explosão, está em expansão contínua até hoje e, um dia, poderá voltar à sua contração inicial. E assim é com a nossa vida: muitas vezes sentimos que estamos a evoluir em algum aspecto - por exemplo, na forma de lidar com alguma situação ou "gatilho" - mas, em algum momento, sentimo-nos cair nas mesmas "armadilhas". Nesses momentos, podemos sentir desânimo ou mesmo culpa. "Como assim? Pensei que já tinha aprendido a lidar com isto..." Mas essa constante dança cósmica entre contração e expansão é inevitável e, por outro lado, (um conceito que ouvi do Cadu Cassaú) em momentos de expansão, a vida vai-nos confrontar com desafios. Nesses desafios, reside a nossa possibilidade real de expansão. Eu estava a mais de meio do meu curso de Direito, quando decidi largá-lo e tentar entrar na Escola Superior de Música para seguir Piano. Pouco tempo antes da prova de acesso, tive um lesão no pulso que me impossibilitou de praticar por cerca de duas semanas - o que equivaleria a um atleta não poder treinar por duas semanas às portas da Olimpíada. Foi uma fase complicada para mim, animicamente. Fez-me desanimar, questionar. Será que não era para eu ir por ali? Mas eu sentia, cá dentro, que sim. Eu e a minha mãe corremos atrás de tudo o que foi tratamento, aos poucos voltei a estudar, "arregacei as mangas" e fui admitida no curso. Aquela fase de contração, marcou uma enorme expansão na minha vida, até pelas dificuldades que encontrei e que foram momentos de aprendizagem e crescimento para mim. Aquele desafio fez-me ter inequívoca certeza do caminho que estava a escolher. Não tema a contração: ela precede a sua expansão. 

156-365


Nós, no Ocidente, temos a tendência para confundir o que é "Eu" com o que é "meu". Tenho duas pernas, mas não sou as minhas pernas. Tenho dois braços mas não sou os meus braços. Tenho uma mente, mas não sou a minha mente. Essa é a maior confusão de todas: temos pensamentos, mas não somos os nossos pensamentos. A nossa mente é, em traços gerais, uma ferramenta. É a ferramenta através da qual interpretamos e interagimos com o mundo à nossa volta.
A nossa mente são as lentes através das quais vemos o mundo, o computador com o qual processamos os dados coletados e o instrumento através do qual projetamos na realidade uma reação ao que deciframos. É uma ferramenta que deveria ser utilizada a nosso favor mas, muitas vezes, deixamos que trabalhe contra nós. Inunda-nos de pensamentos repetitivos e destrutivos, circunscreve a nossa visão do mundo a "caixinhas" que ela mesmo criou e mantem-nos na ilusão da identificação que criamos com ela. "Penso, logo existo". Temos cerca de 70 mil pensamentos por dia, sendo que mais de 90% são fruto do nosso inconsciente (piloto automático). Mas... e no espaço entre um pensamento e outro? E por trás de cada pensamento, quem está? Quem ou o quê gera os pensamentos? E, na ausência deles, o que fica, quem somos? Não se deixe aprisionar pela sua mente. Mergulhe fundo, no seu silêncio, onde a mente não alcança.
“O que fica atrás de nós e o que repousa à nossa frente têm muito pouca importância, comparado com o que há dentro de nós.” (Ralph Waldo Emerson)