terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Eu e a Gioconda

 "Um professor afeta a eternidade; é impossível dizer até onde vai a sua influência."

                                                                                Henry Adams


Nem eu nem a Gioconda poderíamos imaginar o caminho que iríamos percorrer quando, naquela tarde, com 8 anos de idade, entrei na sala dela com a minha amiga Inês. Posso dizer que não me lembro das minhas primeiras aulas de piano, mas recordo-me claramente desse dia em que conhecemos a nossa professora. Recebeu-nos enquanto dava aula a uma aluna mais velha, na sala 3 - a "sala da professora Gioconda". Com aquela amabilidade que a caracterizava, sorridente, pediu-nos para lhe mostrarmos as mãos. Ambas estendemos as mãos abertas na direção dela que exclamou "Que lindas mãos de pianista que vocês têm! Tenho a certeza que vão ser boas alunas!". Nós, tímidas - do género "entrar muda e sair calada" - nem sei se comentamos muita coisa durante os minutos em que estivemos ali. Acho que ouvimos a aluna mais velha tocar alguma música e a Gioconda motivou-nos, mais uma vez, "Daqui a pouco são vocês a tocar assim!.." Quando saímos da sala, lembro-me de olharmos para as mãos, encantadas: "a professora diz que temos mãos de pianista..."

Mas..aos 8 anos de idade, o piano não era uma paixão para mim. Era só mais uma disciplina da escola à qual me dedicava o quanto podia, o melhor que podia, dentro do tempo (limitado) que a ginástica artística - essa, sim, minha paixão - me deixava. Desses primeiros anos, lembro-me bem do começo das aulas, da exigência da Gioconda em querer a melhor posição das nossas mãos ao piano - como uma "bolinha" e com o pulso leve - e das músicas a 4 mãos que toquei com a Inês e uma música a 6 mãos que toquei com a Inês e outro colega nosso - momentos de muita diversão e aprendizagem que guardo com o maior carinho.

Os anos foram passando e, não sei precisar em qual momento, a Gioconda teve de diminuir as horas de aulas e conversou com a minha mãe para saber qual seria a minha intenção em relação ao piano dali para a frente, uma vez que a ginástica ocupava a maior parte do meu tempo e prioridade. A minha mãe - obrigada, mamã - disse-lhe que não desistisse de mim que, quem sabe, um dia, eu poderia dedicar-me mais ao piano. Após um período conturbado, muitas lesões e um cansaço/desânimo, desisti da ginástica. Em pouco tempo, pensei também desistir do piano - talvez um pouco de rebeldia da adolescência - e tive algumas das piores discussões com a minha mãe, que não me deixou desistir - mais uma vez: obrigada, mamã. Mas, vindo não sei de onde, comecei a sentir um vazio pela falta de objetivos, desafios aos quais estava constantemente habituada com a ginástica. E, bem nesse momento, a Gioconda resolveu ter uma conversa séria comigo e a Inês. "Vocês estão a ficar atrasadas no programa de piano, e têm de decidir o que querem fazer. Se quiserem desistir, tudo bem, deixarei de ser vossa professora mas terão sempre a minha amizade. Mas se optarem por continuar, fazer o exame de 5º grau, têm de mudar de atitude, dedicar-se, estudar horas e horas por dia, desenvolver a técnica." Nessa altura, eu já estava a estudar um Prelúdio de J.S Bach que mexia com a minha sensibilidade. Comecei a perceber que, quando tocava piano, conseguia exprimir-me de uma forma que as palavras não permitiam. De alguma forma, conseguia aceder a partes de mim às quais não chegava por nenhum outro meio. Então, naquele momento oportuno, a Gioconda soube dizer exatamente o que eu precisava ouvir e aquelas palavras mexeram profundamente comigo - como tantas e tantas vezes aconteceu. Não ia desistir novamente! Resolveu trocar todas as minhas peças - excepto o tal Prelúdio de Bach. Com enorme sensibilidade à nossa personalidade, como era sua característica, tocou algumas peças para eu escolher. E como tocava bem! Uma exímia pianista, de uma sensibilidade e expressividade raras. Tudo parecia fácil quando era ela a tocar. Entre as peças que tocou para eu ouvir, estava uma Canção sem Palavras de Mendelssohn. Emocionou-me como nenhuma música antes, com aquele arrepio na espinha e, sem qualquer dúvida, escolhi-a. Aprovou a minha escolha dizendo, como costumava, "Vai ficar-te muito bem." E, sim, foi essa peça que mudou a minha vida. Foi ali que eu percebi tudo o que a música me permitia exprimir. Sem palavras. A Gioconda dizia-nos "a música é poesia, e as notas são as nossas palavras. Se tu te emocionas a tocar, os outros também se emocionam a ouvir-te." Comecei a estudar várias horas de piano por dia. Abraçava, apaixonada, o ideal de perfeição que a Gioconda nos fazia perseguir. Incentivava-nos a sonhar, a encontrar a nossa Voz, a desenvolver a nossa sensibilidade, mais ainda do que a nossa técnica. Ao mesmo tempo, fomos estreitando laços a um ponto em que eu não tinha que dizer se estava tudo bem comigo ou não: era só entrar na sala e ela já sabia, só de olhar para mim. Mais do que professora, tornou-se uma grande Amiga, que sabia respeitar o nosso silêncio e ouvir os nossos desabafos. Também conversava connosco sobre a vida dela, fazia questão de nos mostrar que era "gente como a gente" (como se diz aqui no Brasil), com alegrias, tristezas, problemas, preocupações. Enfrentou perdas e doenças com coragem e resiliência. Tudo isso nos fazia admirá-la sempre mais. Admirávamos não só a excelente professora e pianista que era, mas o ser humano sensível, generoso, dedicado que sempre foi. (Quantas vezes corria para ajudar a família, quantas aulas a mais nos dava, quantas vezes nos recebeu na sua casa em aulas particulares sem aceitar nenhum pagamento?) Elegante, amável e educada como nenhuma outra pessoa que tenha conhecido. Carinhosa connosco, fazia questão de nos escrever bilhetes que entregava, principalmente, nos dias das audições - verdadeiros tesouros para mim. Não tinha vergonha de se emocionar. Não raras vezes a vimos chorar, emocionada com a música ou com bilhetes que também gostávamos de lhe escrever. Hoje, faço questão de a lembrar e homenagear aqui mas, se há coisa que me deixa feliz, é saber que sempre o fiz, sempre soube exprimir-lhe a gratidão pelo grande presente que me deu, e de uma forma tão especial e completa: a Música. Sempre soube desculpar-me quando errei. Sempre soube exprimir-lhe o quanto a admirava, o quanto a nossa amizade significava para mim. Sempre demonstrei afeto e carinho. A Gioconda inspirava-nos a procurar e a ser o melhor de nós. Não só na música, mas na vida. Uma das evidências disso é a classe de alunos unida e coesa que conseguiu construir. De alguma foma, nós éramos o espelho das qualidades humanas da Gioconda: não havia a menor competitividade entre nós. Só entreajuda, amizade, zelo, carinho. A Gioconda promovia o nosso convívio, e todos conhecíamos bem as peças que todos tocavam, por isso, sabíamos exatamente quais eram os compassos mais difíceis para cada um de nós, e o que sempre aconteceu foi uma enorme corrente de boas energias que se formava enquanto cada um de nós se apresentava em público. Nas partes difíceis, todos cruzávamos os dedos e, quando tudo corria bem, todos comemorávamos como uma conquista de cada um. Quando corria menos bem, todos nos apoiávamos. Criámos amizades fortes e verdadeiras. Algumas das minhas melhores amigas até hoje, são desse grupo. Tenho a certeza que a Gioconda ficaria feliz de saber que permanecemos próximas.  

Infelizmente, já a tínhamos perdido, sem a perder, há vários anos. Deixamos de partilhar tantas coisas... A última vez em que a encontrei, conseguiu lembrar-se de mim, do meu nome e de onde me conhecia mas, quando lhe mostrei a fotografia do meu filho bebé, não conseguiu esboçar nenhuma reação. Naquela época, já era apenas uma sombra pálida do ser humano iluminado que foi. Não imagino o sofrimento que a família passou - sempre admirámos a forma como ela e o marido se olhavam, com ternura e admiração, a linda relação que tinham construído depois de tantos anos juntos. Quando, nesse dia, me despedi do marido, confidenciou-me que a Gioconda jamais tinha apagado do telemóvel as mensagens carinhosas que eu lhe enviava. Segurei as lágrimas enquanto o abraçava, mas desabei. Que falta que ela nos fez! Que falta que ela nos faz! Que bom que vivemos essa amizade. Que bom que cada uma de nós soube demonstrar à outra o que sentia. Que bom que ela continuará viva nos ensinamentos que nos deu e que nós passamos adiante, nas memórias que criamos juntas, no afeto e carinho que sempre teremos por ela, nas notas que tocamos no piano, na Música que, como a Gioconda dizia, "vai ser sempre a nossa melhor amiga." Obrigada, Gioconda. Obrigada. Até sempre.