terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Eu e o ego


“Acordar para quem se é, requer desapego de quem você imagina ser.”

Alan Watts

 

Olhando para trás, percebo que, se há coisa que a vinda para São Paulo me proporcionou foi recomeçar. Não me refiro a recomeçar carreira, questões materiais ou nada dessas coisas que parecem óbvias e necessárias quando se muda de país ou cidade. A questão é que essa mudança obrigou-me a existir sem nada daquilo que foi parte da minha existência por 30 anos. Eu vi-me noutro país, com outra cultura, outros hábitos, outros problemas e desafios, outro clima (até outros mosquitos, aos quais me tornei, como já contei, extremamente alérgica), sem família nem amigos por perto, sem nada, absolutamente nada familiar ou conhecido, sem piano, sem nem sequer o meu sotaque. Era só eu, o meu marido e o meu filho. Em várias horas do dia era só eu e o meu turbilhão de pensamentos. Eu passei a ser a única portuguesa do meu dia-a-dia, não era mais a pessoa que tocava piano – e, por algum tempo, nem mesmo a pessoa que ensinava a tocar piano -, que podia ver os amigos e família com facilidade, não tinha mais carro para me levar a qualquer lugar a qualquer hora. Elencar todas as coisas das quais sentia falta era, na verdade, enumerar todas as coisas com as quais me identificava. Eu sentia falta de tudo de Lisboa. Tudo. Quanto mais pensava nisso, de mais coisas simples e ridículas me lembrava. Pensar em Lisboa, na minha família, nos meus amigos, no meu piano, era como querer agarrar-me com unhas e dentes a quem eu era. Porque...O que aconteceria comigo se eu deixasse de ser aquela pessoa? Quem seria eu, então? Como poderia eu existir sem a minha família? Quem sou eu sem eles? Sem os meus amigos, conhecidos, sem os lugares que frequentava? Quem sou eu se não tocar piano, sem a minha música? Quem sou eu se comer coisas diferentes? Se pensar coisas diferentes? Ou até mesmo se falar com um sotaque diferente? Quem sou eu? Temendo que a distância de quase 8000 km me pudesse fazer esquecer, o meu ego, ao mesmo tempo frágil e resistente, como o são todos os egos, – aquela vozinha que fala incessantemente na nossa mente, que nos diz que não somos bons o suficiente, que tem medo, que é insegura, que acha que tem de provar alguma coisa a alguém, que julga, critica, que se compara, que nos faz crer que as respostas estão “lá fora”, nas coisas materiais - procurava coisas e mais coisas às quais se apegar, pois o ego só se sente bem no que lhe é familiar, conhecido. O ego faz-nos crer que o que somos é o resultado de um conjunto de circunstâncias (país em que nascemos), características físicas, pessoas com quem nos relacionamos, gostos e aversões que temos, traços de personalidade, profissão que exercemos, coisas que possuímos, etc. etc. Reparem... Se alguém perguntar: “Quem és tu?” A nossa tendência é elencar uma série de características: mulher, 39 anos, portuguesa, pianista. Podemos acrescentar estrutura física, raça, traços de personalidade, coisas favoritas ou até papéis que representamos no mundo (filha, mãe, esposa, irmã, colega, diretora, funcionária). Mas...se pararmos para pensar: isso é tudo o que somos? E quando não somos mais o que somos? O que resta? Foi aí que surgiu a minha oportunidade de recomeçar. Recomeçar a questionar-me. Recomeçar a busca. Quem sou eu se grande parte do que eu entendo por “parte de mim” me faltar? Deixando de ouvir o meu ego que gritava, clamava e exigia o seu conforto no que lhe é familiar, eu rendi-me a tudo o que me causava desconforto e angústia e resolvi tentar espreitar o que tinha do outro lado dessas camadas que cobrem o meu Ser. Aliás, é isso exatamente que fazem os monges (budistas, hindus, cristãos, ou quaisquer outros): abdicam das suas roupas, posses, cabelos, confortos, para que possam, enfim, olhar-se e descobrir-se despidos de tudo o que achavam ser. Assim como uma borboleta tem de se desapegar da identificação com a lagarta que achava ser para poder abrir asas e alçar voo.

Eu sempre me questionei “quem sou eu?”. Talvez mesmo antes da adolescência eu já fosse assaltada por essa angústia. Lembro-me, claramente, de a minha professora de piano me entregar um bilhete de “feliz Natal” após uma audição em que escreveu algo como “Espero que encontres tudo o que procuras na vida”. Aquilo foi como um soco no meu estômago. Do que, realmente, eu estava à procura? Eu nem mesmo fazia uma pequena ideia de “quem sou eu”, quanto mais do que procurar!.. Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Por que estou aqui? Estas eram as perguntas que passeavam incessantemente pela minha mente. Sem resposta. A minha mãe sossegava-me, dizia que era normal passarmos por essas dúvidas, questões e inquietações. Que não me preocupasse, que com o tempo, isso passa: ninguém sabe as respostas, e tudo bem. Aprendemos a viver sem as perguntas. Eu reparava que nem todos os meus colegas se preocupavam com esses assuntos e estranhava. Como podem não se perguntar de onde viemos? Por que estamos aqui? Para onde vamos? Porque eu fechava os olhos e observava: “impossível não pensar em nada...impossível “ser nada”, “não existir”. Eu queria entender. Seria tudo um enorme acaso? E quando morrêssemos, seria o fim? Como conceber o “nada”? Nem mesmo o silêncio eu concebia como real. À noite, sem um som que fosse na casa, eu percebia que, ainda assim, ouvia alguma coisa, um “zumbido”, uma vibração ou, nem que seja, o som da nossa respiração ou do nosso coração a bater. E então eu li “Fernão Capelo Gaivota”, de Richard Bach, que falava sobre ir mais além, sobre uma gaivota que não queria ser como as outras que só voavam para procurar comida e só viviam em função de satisfazer as suas necessidades básicas. Também li o “Pequeno Príncipe” que me disse que o essencial é invisível aos olhos. Perdi-me e encontrei-me nos versos de Fernando Pessoa e seus heterónimos. Identifiquei-me totalmente quando li, pelo mesmo autor de Fernão Capelo Gaivota, que todos e tudo somos “UM”. Aprendi com “O Profeta” de Khalil Gibran e com os ensinamentos de Osho. Deixei-me maravilhar pela Música e, ao tocar piano, comprovei que somos muito mais do que células, tecidos e ossos. Sempre fui sensível à beleza de uma paisagem, um pôr-do-sol, lua, estrelas, uma flor. Continuei a ler, ler, escrever, tocar. Percebi que a resposta a “o que queres ser na vida?” era simplesmente “feliz” - e só bem mais tarde soube que essa frase já tinha dono (John Lennon). A questão é “o que é isso de ser feliz?” É ter tudo o que queremos? Ou Ser quem queremos? Se achamos que somos felizes quando temos o que queremos, estamos a colocar a nossa felicidade na dependência de uma série de fatores externos e sobre os quais não temos o menor controle. Há, até, quem coloque a sua felicidade nas mãos de outra pessoa: é no outro que está a sua felicidade. Se o outro se vai embora, o mundo colapsa...e a culpa é do outro. Se obtemos o que tanto queríamos, logo encontramos outro objeto de desejo. É uma procura sem fim: há sempre um carro melhor, uma casa melhor, um telemóvel mais moderno, uma viagem mais exótica, um trabalho com melhor status ou melhor salário, ser mãe, ter um cão ou até, quem sabe, um avião! Mas... ser quem queremos...Só depende de nós. Podemos argumentar: mas eu sou assim, sempre fui e não vou mudar. Sim, indubitavelmente trazemos connosco traços de personalidade mas, se analisarmos bem, uma boa parte deles não são realmente nossos: foram adquiridos por nós, fruto de circunstâncias do ambiente em que vivemos, das pessoas com quem convivemos, das experiências às quais fomos expostos. Tudo são crenças que vamos abraçando, uma espécie de programação que se estabelece e que rege (quase) tudo o que pensamos, sentimos e fazemos. É disso que o tal ego se alimenta. Desses pensamentos automáticos que correm na programação do nosso cérebro inconsciente. Observemos cada uma das nossas crenças, cada uma das coisas que achamos que nos definem. Deixemos cair por terra uma a uma. O que sobra? Quem somos nós sem as nossas certezas? Quem somos sem o nosso emprego? Sem a família, os amigos? Quem somos nós sem o ressentimento, sem o ódio? Quem somos nós sem o nosso porto-seguro? Sem chão, sem tecto? Sem os dogmas da religião ou da sociedade? Quem somos nós sem o medo? Sem a nossa dor? Sem a nossa reclamação constante? Quem somos nós sem o sofrimento? Sem aquilo que nos magoou? Sem a culpa? Quem somos nós sem as nossas conquistas? Sem a alegria ou o orgulho? Sem a vergonha? Quem somos nós sem as histórias que vivemos? Quem somos nós no final de tudo isso? Quem, desde o começo, nunca deixamos de Ser.