quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Eu e ser portuguesa

"O grande impedimento para as pessoas "verem" as coisas como elas são é a identificação que criamos com tantas coisas. No momento em que nos identificamos com alguma coisa, toda a mente entende que aquilo tem de ser protegido e trabalha nesse sentido. Na medida em que as identificações aumentam, o drama psicológico aumenta e "veremos" cada vez menos. Em algum momento, não veremos mais nada além disso e vamos afogar-nos nos nossos próprios pensamentos e emoções."

Sadhguru


Uma das primeiras identificações que criamos é com a nossa nacionalidade. Nascemos, por acaso (ou não), em um ponto geográfico específico, com determinadas fronteiras, nome, língua, cultura. Aprendemos a História desse pedacinho de terra: quem pisou ali primeiro, com quem os nossos antepassados lutaram ou não para que essa terra fosse nossa. Há sempre alguns vilões que tentaram (ou conseguiram) usurpar a nossa liberdade ou independência e nós, por outro lado, fomos vilões para outros tantos. (A identificação, nesse ponto, é tão complexa que, ainda hoje, vemos povos que se odeiam, após gerações e gerações de conflitos.) Aprendemos os símbolos dessa terra: bandeira e hino - que, muitas vezes, fala dos tais vilões que, heroicamente, derrotamos - e aprendemos a respeitá-los e até a sentir afeto por eles. Crescemos nesse  lugar e habituamo-nos ao tipo de alimentação, música, hobbies, histórias. Tudo isso começa a fazer parte de quem somos.
Um dia, resolvemos procurar outro pedacinho de terra para viver. Com outro nome, língua,  bandeira, hino, comidas, músicas, histórias e tradições. Logo a nossa mente, que se identifica com o outro lugar e que procura sempre o que lhe é familiar, começa a trabalhar arduamente. Para onde quer que olhemos, lá está ela a lançar-nos alertas "Não, não é assim que deve ser", "Não, não gosto disto" ou "No outro lugar é que é bonito e bom". Tudo se torna desconfortável e desafiante. A nossa identificação ganha força.  Parece que precisamos dessa referência para conseguir manter-nos inteiros ali, nesse lugar desconhecido. Tudo o mais desapareceu, mas ainda sabemos quem somos: somos de lá, do outro lugar onde deixamos (quase) tudo o que amamos. Dá vontade de gritar e bater no peito, com orgulho: Eu sou do outro lugar! As nossas raízes, estendem-se por quantos quilómetros forem necessários para nos manter no "nosso" lugar. No meu caso, cerca de 8000 km. Foi aqui no Brasil que me senti mais portuguesa do que nunca. Comecei a gostar de coisas que nunca me disseram nada enquanto vivia em Portugal, como o fado, por exemplo. Ouvir o sotaque de Portugal na rua fazia o meu coração disparar e ouvir o hino nacional deixava-me em lágrimas. E como era bom comer alguma coisa típica de Portugal, fechar os olhos e imaginar-me a saboreá-la lá. O tempo foi passando e comecei  a sentir-me mais confortável aqui. Aprendi, aos poucos, mais coisas sobre este outro pedacinho (bem maior, por sinal!) de terra, e comecei a gostar de várias coisas daqui e a aceitar com mais serenidade aquelas de que não gosto. Fui percebendo, a pouco e pouco que, ao mesmo que me sentia mais portuguesa, comecei, ainda que isso pareça totalmente paradoxal, a sentir-me cada vez mais uma cidadã do mundo. Não só por estar noutro país, mas por contactar aqui com pessoas de diversos países. Continuo a sentir-me afetivamente muito ligada a Portugal. Amo o meu país, admiro e respeito a nossa cultura, mas percebi que isso não é um factor excludente. Ser portuguesa não faz de mim melhor ou pior pessoa. Mais importante ainda: ser portuguesa, em última análise, não define nada do ser humano que sou. Eu sou quem sou seja em que lugar do Mundo for e "ser portuguesa"  certamente definiu parte das experiências que vivi e parte dos traços de personalidade que, eventualmente, adquiri por força de alguns hábitos e crenças estabelecidos mas entendi que, se me agarro com unhas e dentes a "eu sou portuguesa e isso, para mim, não é assim, não está certo" estou a fechar-me a outra série de experiências e aprendizagens.
Podemos sentir empatia com outras culturas, com pessoas das mais variadas origens, raças ou etnias. Isso não ameaça quem somos: enriquece-nos. Não  nos diminui em nenhum aspecto, mas liberta-nos de amarras que nos condicionam e permite-nos procurar quem realmente somos para além de todo e qualquer rótulo ou identificação que adquirimos com o tempo.  Deixamos de ser quem somos por adquirir uma nova nacionalidade, profissão, nome, peso ou o que quer que seja? Esqueçamos nacionalidade, género, idade, profissão, estado civil, signo ou qualquer outra coisa que achamos que nos define quando  começamos uma frase com "Eu sou...". O que resta? Somos todos feitos da mesma matéria, uma centelha do divino, guiados pelos mesmos ideais de felicidade. Somos todos uma única espécie e todos andamos com os pés na terra, com o céu, lua e estrelas sobre a cabeça. O mar é grandioso em qualquer lado e sempre existirão dias de chuva e dias de sol. Todos habitamos o mesmo pedacinho incrível: o planeta Terra. Não me tornei menos portuguesa: tornei-me mais humana. 



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