“Acordar para quem se é, requer desapego de quem você
imagina ser.”
Alan Watts
Olhando para trás, percebo que, se há coisa que a vinda para
São Paulo me proporcionou foi recomeçar. Não me refiro a recomeçar carreira,
questões materiais ou nada dessas coisas que parecem óbvias e necessárias
quando se muda de país ou cidade. A questão é que essa mudança obrigou-me a existir sem nada daquilo que foi parte
da minha existência por 30 anos. Eu vi-me noutro país, com outra cultura,
outros hábitos, outros problemas e desafios, outro clima (até outros mosquitos,
aos quais me tornei, como já contei, extremamente alérgica), sem família nem
amigos por perto, sem nada, absolutamente nada familiar ou conhecido, sem
piano, sem nem sequer o meu sotaque. Era só eu, o meu marido e o meu filho. Em
várias horas do dia era só eu e o meu turbilhão de pensamentos. Eu passei a ser
a única portuguesa do meu dia-a-dia, não era mais a pessoa que tocava piano –
e, por algum tempo, nem mesmo a pessoa que ensinava a tocar piano -, que podia
ver os amigos e família com facilidade, não tinha mais carro para me levar a
qualquer lugar a qualquer hora. Elencar todas as coisas das quais sentia falta
era, na verdade, enumerar todas as coisas com as quais me identificava. Eu
sentia falta de tudo de Lisboa. Tudo. Quanto mais pensava nisso, de mais coisas
simples e ridículas me lembrava. Pensar em Lisboa, na minha família, nos meus
amigos, no meu piano, era como querer agarrar-me com unhas e dentes a quem eu
era. Porque...O que aconteceria comigo se eu deixasse de ser aquela pessoa?
Quem seria eu, então? Como poderia eu existir sem a minha família? Quem sou eu
sem eles? Sem os meus amigos, conhecidos, sem os lugares que frequentava? Quem
sou eu se não tocar piano, sem a minha música? Quem sou eu se comer coisas
diferentes? Se pensar coisas diferentes? Ou até mesmo se falar com um sotaque
diferente? Quem sou eu? Temendo que a distância de quase 8000 km me pudesse
fazer esquecer, o meu ego, ao mesmo tempo frágil e resistente, como o são todos
os egos, – aquela vozinha que fala incessantemente na nossa mente, que nos diz
que não somos bons o suficiente, que tem medo, que é insegura, que acha que tem
de provar alguma coisa a alguém, que julga, critica, que se compara, que nos
faz crer que as respostas estão “lá fora”, nas coisas materiais - procurava
coisas e mais coisas às quais se apegar, pois o ego só se sente bem no que lhe
é familiar, conhecido. O ego faz-nos crer que o que somos é o resultado de um
conjunto de circunstâncias (país em que nascemos), características físicas,
pessoas com quem nos relacionamos, gostos e aversões que temos, traços de
personalidade, profissão que exercemos, coisas que possuímos, etc. etc.
Reparem... Se alguém perguntar: “Quem és tu?” A nossa tendência é elencar uma
série de características: mulher, 39 anos, portuguesa, pianista. Podemos
acrescentar estrutura física, raça, traços de personalidade, coisas favoritas
ou até papéis que representamos no mundo (filha, mãe, esposa, irmã, colega,
diretora, funcionária). Mas...se pararmos para pensar: isso é tudo o que somos?
E quando não somos mais o que somos? O que resta? Foi aí que surgiu a minha
oportunidade de recomeçar. Recomeçar a questionar-me. Recomeçar a busca. Quem
sou eu se grande parte do que eu entendo por “parte de mim” me faltar? Deixando
de ouvir o meu ego que gritava, clamava e exigia o seu conforto no que lhe é
familiar, eu rendi-me a tudo o que me causava desconforto e angústia e resolvi
tentar espreitar o que tinha do outro lado dessas camadas que cobrem o meu Ser.
Aliás, é isso exatamente que fazem os monges (budistas, hindus, cristãos, ou
quaisquer outros): abdicam das suas roupas, posses, cabelos, confortos, para
que possam, enfim, olhar-se e descobrir-se despidos de tudo o que achavam ser. Assim
como uma borboleta tem de se desapegar da identificação com a lagarta que
achava ser para poder abrir asas e alçar voo.
Eu sempre me questionei “quem sou eu?”. Talvez mesmo antes
da adolescência eu já fosse assaltada por essa angústia. Lembro-me, claramente,
de a minha professora de piano me entregar um bilhete de “feliz Natal” após uma
audição em que escreveu algo como “Espero que encontres tudo o que procuras na
vida”. Aquilo foi como um soco no meu estômago. Do que, realmente, eu estava à
procura? Eu nem mesmo fazia uma pequena ideia de “quem sou eu”, quanto mais do
que procurar!.. Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Por que estou aqui?
Estas eram as perguntas que passeavam incessantemente pela minha mente. Sem
resposta. A minha mãe sossegava-me, dizia que era normal passarmos por essas
dúvidas, questões e inquietações. Que não me preocupasse, que com o tempo, isso
passa: ninguém sabe as respostas, e tudo bem. Aprendemos a viver sem as
perguntas. Eu reparava que nem todos os meus colegas se preocupavam com esses assuntos
e estranhava. Como podem não se perguntar de onde viemos? Por que estamos aqui?
Para onde vamos? Porque eu fechava os olhos e observava: “impossível não pensar
em nada...impossível “ser nada”, “não existir”. Eu queria entender. Seria tudo
um enorme acaso? E quando morrêssemos, seria o fim? Como conceber o “nada”? Nem
mesmo o silêncio eu concebia como real. À noite, sem um som que fosse na casa,
eu percebia que, ainda assim, ouvia alguma coisa, um “zumbido”, uma vibração
ou, nem que seja, o som da nossa respiração ou do nosso coração a bater. E
então eu li “Fernão Capelo Gaivota”, de Richard Bach, que falava sobre ir mais
além, sobre uma gaivota que não queria ser como as outras que só voavam para
procurar comida e só viviam em função de satisfazer as suas necessidades
básicas. Também li o “Pequeno Príncipe” que me disse que o essencial é
invisível aos olhos. Perdi-me e encontrei-me nos versos de Fernando Pessoa e
seus heterónimos. Identifiquei-me totalmente quando li, pelo mesmo autor de
Fernão Capelo Gaivota, que todos e tudo somos “UM”. Aprendi com “O Profeta” de
Khalil Gibran e com os ensinamentos de Osho. Deixei-me maravilhar pela Música
e, ao tocar piano, comprovei que somos muito mais do que células, tecidos e
ossos. Sempre fui sensível à beleza de uma paisagem, um pôr-do-sol, lua,
estrelas, uma flor. Continuei a ler, ler, escrever, tocar. Percebi que a
resposta a “o que queres ser na vida?” era simplesmente “feliz” - e só bem mais
tarde soube que essa frase já tinha dono (John Lennon). A questão é “o que é
isso de ser feliz?” É ter tudo o que queremos? Ou Ser quem queremos? Se achamos
que somos felizes quando temos o que queremos, estamos a colocar a nossa
felicidade na dependência de uma série de fatores externos e sobre os quais não
temos o menor controle. Há, até, quem coloque a sua felicidade nas mãos de
outra pessoa: é no outro que está a sua felicidade. Se o outro se vai embora, o
mundo colapsa...e a culpa é do outro. Se obtemos o que tanto queríamos, logo
encontramos outro objeto de desejo. É uma procura sem fim: há sempre um carro
melhor, uma casa melhor, um telemóvel mais moderno, uma viagem mais exótica, um
trabalho com melhor status ou melhor salário, ser mãe, ter um cão ou até, quem
sabe, um avião! Mas... ser quem queremos...Só depende de nós. Podemos
argumentar: mas eu sou assim, sempre fui e não vou mudar. Sim, indubitavelmente
trazemos connosco traços de personalidade mas, se analisarmos bem, uma boa
parte deles não são realmente nossos: foram adquiridos por nós, fruto de
circunstâncias do ambiente em que vivemos, das pessoas com quem convivemos, das
experiências às quais fomos expostos. Tudo são crenças que vamos abraçando, uma
espécie de programação que se estabelece e que rege (quase) tudo o que
pensamos, sentimos e fazemos. É disso que o tal ego se alimenta. Desses
pensamentos automáticos que correm na programação do nosso cérebro
inconsciente. Observemos cada uma das nossas crenças, cada uma das coisas que
achamos que nos definem. Deixemos cair por terra uma a uma. O que sobra? Quem
somos nós sem as nossas certezas? Quem somos sem o nosso emprego? Sem a família,
os amigos? Quem somos nós sem o ressentimento, sem o ódio? Quem somos nós sem o
nosso porto-seguro? Sem chão, sem tecto? Sem os dogmas da religião ou da
sociedade? Quem somos nós sem o medo? Sem a nossa dor? Sem a nossa reclamação
constante? Quem somos nós sem o sofrimento? Sem aquilo que nos magoou? Sem a
culpa? Quem somos nós sem as nossas conquistas? Sem a alegria ou o orgulho? Sem a vergonha? Quem
somos nós sem as histórias que vivemos? Quem somos nós no final de tudo isso?
Quem, desde o começo, nunca deixamos de Ser.
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