quarta-feira, 2 de junho de 2021

Eu e a memória

Uma das coisas mais curiosas que me aconteceu quando me mudei para São Paulo foi a percepção de que as memórias que temos estão, literalmente, armazenadas no nosso corpo, a nível celular, e não apenas no nosso cérebro. Na época, não sabia verbalizar isto desta maneira e, muito menos, tinha a noção de que isto são conceitos que têm vindo a ser trabalhados pela ciência moderna. Logo quando cheguei, era janeiro e o pico do verão aqui. Várias vezes eu não conseguia evitar pensar que estávamos no meio do ano, em julho ou agosto. Não, não era um pensamento: era uma sensação física, uma momentânea e errónea sensação, - ou melhor, certeza - de que estava no meio do ano. Ao voltar à realidade de que estávamos em janeiro, mais uma vez, tinha uma sensação física, real, como se fosse uma espécie de "nó" na cabeça. O ano avançou e os dias cinzentos e mais frios chegaram e eu conseguia, literalmente, em breves e inexplicáveis instantes, sentir o cheiro das castanhas assadas ou das filhós da minha mãe. Tinha a certeza que o Natal estava aí à porta! Mas... não, era o meu aniversário, que se aproximava...no final de junho. Nos primeiros anos, tudo me parecia sempre fora do lugar. E, repito, não era uma questão intelectual ou emocional, mas física. Estas oscilações entre o que sentia na pele e ossos e o que era real geravam-me quase um leve desconforto físico. Alguém que já tenha feito uma cirurgia, consegue ter um vislumbre daquilo a que me refiro: a sensação estranha e desconfortável que temos ao tocar na região do corte e não sentirmos o que habitualmente sentiríamos. Anos mais tarde, já não me afeta absolutamente nada se é verão no inverno, verão no verão ou inverno no verão. Onde estou, adapto-me naturalmente ao que é. E agora entendo que as minhas sensações tinham razão de ser: segundo as pesquisas científicas, crê-se agora que as células têm a sua própria memória. Não apenas os neurónios no cérebro mas toda e qualquer célula no corpo. Isso explica porque pessoas transplantadas, por vezes, adquirem gostos, hábitos e memórias da pessoa de quem receberam o transplante. O conceito de "memória" ė bem mais complexo e amplo do que imaginávamos. Carregamos não apenas uma memória emocional que acumulamos ao longo das nossas experiências (positivas e negativas), mas também uma memória, digamos, genética que herdamos não só dos nossos pais como de nossos ancestrais - em última análise, devemos o nosso "cérebro animal",  que nos permite reagir imediatamente a uma situação de ameaça aos primeiros Homo Sapiens (aqueles que melhor e mais rapidamente reagiam, conseguiam sobreviver e, dessa forma, passar adiante os seus genes). Se a memória é imprescindível para algumas coisas na nossa rotina - imagine todos os dias ter de reaprender a vestir-se, falar, comer, etc - noutros aspectos, pode funcionar contra nós,  deixando-nos ancorados no passado ou apavorados com o futuro com base nas memórias que criámos - porque tivemos uma determinada experiência que levou a certo resultado, evitamos experiências semelhantes que receamos nos levem a resultados idênticos que não queremos repetir. Mas a memória deve ser uma ferramenta que usamos a nosso favor e não uma arma que mina o nosso presente ou futuro. Como lidar com memórias que estão profundamente enraizadas em nós? O caminho mais eficaz é atribuir-lhes um novo significado. Olhe para as experiências sem culpa, arrependimento, raiva: nós fizemos sempre o melhor possível com a informação e a maturidade que tínhamos naquele momento. Não se julgue ou condene com base no que sabe ou ė agora. Não deixe que as experiências o paralisem: use-as como lições que o impulsionem a ser mais e melhor. Nós não somos as nossas memórias: podemos reinventar-nos, libertarmo-nos a qualquer momento. Não se renda àquilo que a sua mente e corpo têm como certo, como hábito. Use a memória de forma inteligente, a seu favor. Não somos escravos do que vivemos, nem do que herdamos. Somos uma obra em constante e eterno progresso. 
A minha experiência em São Paulo permitiu-me aperceber que as impressões geradas pela memória estão bem mais incrustadas em nós do que podemos supôr. Conhecer as linhas que nos prendem é o primeiro passo para podermos desembaraçarmo-nos delas. Assim como no filme Matrix: ninguém pode libertar-se do mundo Matrix se não tiver consciência, primeiro, que está preso lá. Ouse ir além dos genes, das experiências, dos traumas. "Os únicos limites que temos são aqueles em que acreditamos." ( Wayne Dyer )

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