sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Eu e as memórias

A memória é um dos maiores mistérios com que nos deparamos. Porque nos lembramos de certas coisas e esquecemos outras? Claro que há um certo instinto de sobrevivência e tendemos a enterrar, lá bem no fundo, algumas coisas que vivemos e nos deixaram feridas. Por outro lado, o inverso também é totalmente verídico: há tanta coisa que gostaríamos de esquecer e fica ali a martelar, a pingar, a mostrar que não nos deixou, provavelmente pelo mesmo instinto de sobrevivência, de nos sinalizar por onde não é o caminho, e há também outras tantas coisas que gostaríamos de deixar intactas na memória e que, infelizmente, com o passar dos anos se desvanecem. Há ainda aquelas coisas, aparentemente insignificantes e inúteis, que ocupam espaço na memória. Vá-se lá entender...
Todas as semanas, quando dou uma aula nos Jardins, ouço o senhor amolador de facas a passar na rua. Todas as semanas o ouço, naquela melodia tocada na gaita ou qualquer instrumento similar, e todas as semanas aquilo me remete para a minha infância e para os tais mistérios da memória. Todas as semanas surge aquela melodia e, por milésimos de segundo, o meu cérebro engana-se e espanta-se como se fosse a primeira vez que isso acontecesse aqui em São Paulo. Fica estupefacto perante a coincidência de ouvir aquela mesma melodia, tocada a milhares de quilómetros e mais uns tantos anos de distância. Depois como que volta a si mesmo e percebe que já foi apanhado nessa surpresa vezes sem conta, pelo que nem deveria mais ser percebido como uma surpresa. Ainda assim, sempre se surpreende...o que me surpreende. O cérebro, onde as memórias estão armazenadas é, no fundo, o grande X da questão. Quantas vezes vemos uma publicidade e pensamos exatamente a mesma coisa que pensámos quando o vimos vezes anteriores, ou quando passamos num lugar nos acometem as mesmas reflexões? Como se...alguma coisa em nós estivesse "formatada", como se alguma espécie de gatilho fosse disparado no automático. O nosso cérebro, em certa medida, parece ter "vida própria": pula de pensamento em pensamento, de reflexão em reflexão sem que tenhamos muito controle aparente nisso.
Recordo aquela melodia, igual, absolutamente idêntica, dos tempos em que vivia na Póvoa de Santo Adrião, na casa em que vivi desde que nasci até aos 11 ou 12 anos de idade. Não sei porque me lembro daquela melodia, mas lembro-me claramente e, cada vez que a ouço aqui em São Paulo, recordo por breves segundos aquela Praceta, calma no fim-de-semana. Junto com a melodia, recordo cada pedaço que a minha memória permite daquela Praceta. Há 20 anos atrás, jamais poderia supôr que aquela melodia banal, à qual nunca dei especial importância - ou, pelo menos, não que me lembre-, me fosse remeter para aqueles tempos. Preferia lembrar-me melhor de outras coisas. Das pessoas, essencialmente. Do tempo que passei com elas. Tenho memórias cada vez mais difusas da minha infância. Mas, como dizem os grandes sábios, aquilo que nos lembramos da nossa vida não É a nossa vida. É apenas o que nos aconteceu ao longo do caminho. O que a vida realmente É, é um mistério ainda maior do que o da memória. Um imenso, cativante e admirável mistério.



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