domingo, 28 de julho de 2013

Eu e o meu sotaque

É frequente abordarem-me na rua devido ao meu sotaque. À partida, até soa peculiar dizer "o meu sotaque", mas uma vez que aqui eu sou a minoria, a estrangeira, o sotaque é realmente meu. Muitas vezes é algum brasileiro descendente de portugueses que vem, alegre e orgulhosamente, naquela forma calorosa de ser dos brasileiros, revelar-me que, no fundo, no fundo, temos a mesma raíz: "você é portuguesa, não é?" "sim." "O meu pai/mãe/avó/avô também é/era!", dizem com um sorriso aberto. E acrescentam logo a cidade onde o parente nasceu. Confesso que, por vezes, não faço ideia de onde fica, mas sorrio sempre, acenando com a cabeça, e respondo que "sou de Lisboa". Às vezes eles também já lá estiveram e dizem "como é linda" e, outras vezes, revelam-me o quanto gostariam de lá ir. (Penso, secretamente: pois, eu também gostava.) A maior coincidência que já me aconteceu foi com um senhor que estava sentado ao nosso lado no autocarro. O Mateus e ele começaram a interagir e, quando ele me ouviu falar, afirmou "portuguesa." Quando lhe disse que era de Lisboa, respondeu-me "alfacinha". Percebi logo que, ou era português há muitos anos aqui, ou descendente de português. "Eu vivo aqui há mais de 30 anos, mas também sou português. De Lisboa.", disse ele. Conversa vai, conversa vem, percebemos que ele viveu décadas no mesmo bairro que eu, numa rua bem próxima da rua onde vivi mais de 15 anos com a minha mãe e irmão. Outras vezes, abordam-me com o já clássico para mim "você não é daqui..." A seguir ao meu "não..." já ouvi de tudo: há quem não se arrisque e se limite a perguntar "é de onde?", mas outros, perguntam com tom decidido, quase afirmando, as suas suspeitas, e já ouvi de tudo, desde "é portuguesa" a "italiana", passando por "espanhola" e, até mesmo, "é do sul".
No parque a que costumo ir com o Mateus é frequente ser questionada sobre o meu sotaque ou o meu pais. A cena mais caricata aconteceu quando uma menina me veio mostrar uma raíz de uma planta "olha: uma raíz!" Eu sorri e corroborei "é mesmo, você encontrou uma raíz". (Sim, eu modifico algumas estruturas frásicas e algumas expressões para que me entendam melhor, particularmente as crianças, mas mantenho o meu sotaque.) E ela, com um ar de quem sabe dos assuntos, corrige-me "não, é uma ráíz". E eu, primeiro sem entender, continuei "sim, uma râíz". "Não, não", diz-me ela com um ar de professora paciente, "rá-íz". Então percebi o equívoco, e antes que desse um nó na cabeça da menina, imitei o sotaque dela e, mais tranquila, lá seguiu ela para a brincadeira seguinte. A bem da verdade se diga que até o Mateus já me corrigiu uma ou duas vezes. Não lhe levo a mal, claro. Acho engraçado o igualmente ar sapiente dele a mostrar-me que conhece as palavras. E há, de facto, palavras que só agora está a ouvir pela primeira vez, e não é com o meu sotaque que as aprende. Seja como for, acaba por aprender com os dois, que só lhe faz bem ao ouvido, e diz "para mim é "báskéte", e para você é "básket".
Com os meus alunos tenho especial atenção. Entendem quase tudo o que digo. Quando surge alguma dúvida, é só escolher outra palavra ou expressão, ou atenuar o tal meu sotaque. Por exemplo, tenho muito cuidado a pronunciar a palavra "descer". Nós, portugueses, fazemos jus à expressão "a descer todo o santo ajuda" e deslizamos pela palavra com uma rapidez que, atropelando pelo caminho o "c" e o "s", acabamos por dizer "dexêr". Os brasileiros, pelo contrário, poupam nos "ss" e o descer deles soa a "dêcêr". Então, sempre que tenho de dizer essa palavra aos meus alunos - ou seja a quem for-, digo muito bem dito e com toda a calma o "des-cer". Com uma das minhas alunas tive uma agradável conversa sobre a diferença de sotaques a propósito da palavra "colcheia". Pediu-me para escrever a palavra. Depois, muito politicamente correta e amorosa, como sempre é, disse-me, como se alguém tivesse culpa no cartório, "é que, sabe, você fala como escreve, e nós mudamos algumas palavras...por exemplo, aqui está um "l", mas a gente fala como se estivesse um "u". Eu sorri. "Não há certo nem errado. Cada um tem a sua forma de dizer, o seu sotaque. Mas a gente se entende, não é?" Ela acenou sorrindo.
Quem mais me pergunta "você não é daqui" são os taxistas. Há tempos atrás, um deles disse-me "ah, de Portugal...E porque não deixou o sotaque lá?", brincou. "Bom, é o meu, só tenho este", respondi educadamente. "Mas assim está a mostrar que é portuguesa." "E...deveria esconder?", perguntei intrigada. "Não, não, claro que não...Não é isso..." disse ele meio atrapalhado. "O senhor me entende, não é?" "Sim, perfeitamente." "Então...por isso que não vejo necessidade de modificar o meu sotaque. Só preciso de ter cuidado com algumas coisas: falar devagar e com atenção às expressões que utilizo e, dessa forma, toda a gente me entende bem. Com o meu sotaque. Com ele cresci e, acredito, com ele irei morrer."




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