sábado, 22 de setembro de 2012

Eu e a minha avó

Hoje é o aniversário da minha avó. Há vários anos que não podemos comemorar com ela. Não temos esse privilégio. Mas temos o privilégio de a termos conhecido e, mais do que isso, lhe termos sido bem próximos. É desse privilégio que quero falar hoje. Porque hoje é o aniversário da minha avó e, apesar de não poder comemorar com ela, permitam-me que a comemore, a ela, uma das pessoas mais especiais que já conheci.

A minha avó é um exemplo. Exemplo de força e perseverança. Ficou viúva cedo e numa época em que estava doente. Contava-me que, pouco antes de o meu avô falecer, era ela que tinha a convicção de estar perto do fim. O meu avô faleceu, e ela ficou sozinha com as duas filhas. Disse-me que olhou para as pequenas e percebeu que não se podia entregar. Aquela era a hora! Agarrou-se à vida, e trabalhou o quanto pôde para dar sempre o melhor à minha mãe e à minha tia. E deu.  Era uma costureira (ou, denominava-se na altura, modista) muito talentosa. Nós próprios, da família mais chegada, tivemos muitas peças de roupa lindíssimas feitas por ela. Ainda tenho a última saia que me fez e que espero, em breve, poder vestir em recital meu. Algum tempo depois de o meu avô falecer realizou o sonho da minha mãe e ofereceu-lhe um piano. O mesmo piano onde, mais tarde, eu própria aprendi a tocar e onde me preparei para tantos exames e apresentações públicas.
Não voltou a casar. O casamento tinha-lhe roubado muito da sua individualidade e toda a sua independência. E ela era uma mulher independente, senhora de si. Aproveitou isso cada dia do resto da sua vida. Não gostava de "ninguém a dar ordens". Eram outros tempos, o casamento regia-se por outros moldes. Não se pode dizer que a minha avó tenha tido um casamento feliz, mas teve certamente uma viuvez muito feliz. Já avó, praticava ginástica, inscreveu-se na natação e aprendeu a nadar. Mais tarde, pensou inscrever-se numa universidade da terceira idade para, sobretudo, aprender inglês, mas as doenças não permitiram que cumprisse os seus planos. Apaixonou-se numas férias mas, ao saber que o senhor era casado, disse "toda a minha vida nunca cometi erros desse género, não seria agora depois de velha que o faria", e ficou só com a bela lembrança daquele fugaz encontro. Pouco se importava com o que os outros pensavam ou diziam dela. "Eu quero é ser feliz!" Era sem constrangimento algum que, por exemplo, chegava à praia ou qualquer piscina e colocava umas bóias nos braços. Adorava a água, e tirava o maior partido que lhe fosse possível dela, pensassem os outros o que pensassem. Nunca se sentia ridícula ou alvo de críticas. Sentia-se apenas feliz e grata por estar viva e poder fazer as coisas que mais gostava. Nem os problemas de saúde que começaram a persegui-la afetaram a sua forma de encarar a vida. Perdeu grande parte da capacidade auditiva muito jovem. Lidava com isso de forma serena e bem humorada. Quando falavam com ela avisava logo de caras "peço-lhe só que fale alto, por favor, porque eu sou surda." Inúmeras vezes perguntávamos-lhe por alhos e ela respondia em bugalhos!.. Olhava para nós, percebia a nossa expressão confusa e, sorrindo, dizia "não foi nada disso que me perguntaste, pois não? Vamos lá outra vez." Repetíamos, mais devagar e mais alto. "Ah, era isso!..Ai a tua avó..." , e lá vinha a gargalhada contagiante. Mais tarde vieram os problemas mais graves. Primeiro foi atropelada. Várias fraturas, uma longa internação no hospital, mais outro tanto de cama em casa, seguido de intensa fisioterapia. Diziam-lhe que não voltaria a andar. "Eu vou voltar a andar. Oh lá se vou!" E andou. Nunca mais teve a mesma mobilidade, precisava de uma bengala, mas tinha a sua independência e o orgulho - dela e nosso - de ter superado o que parecia insuperável. Depois teve uma doença gravíssima que acabou por lhe provocar um AVC. Ficou dois dias em coma. Os médicos diziam ser uma incógnita se acordaria ou não. Acordou. Durante uns dias não era ela mesma. Tinha alucinações, dizia coisas desconexas. Um belo dia, acordou bem. Tal e qual ela. Lembro-me de a visitar quando ela já sabia que tinha perdido a funcionalidade dos rins. Teria de fazer hemodiálise três vezes por semana. "Pelo menos estou aqui!", disse com o mesmo sorriso de sempre. Sofreu bastante com a hemodiálise. Uma das coisas que lhe custava era as restrições na comida. Ela própria reconhecia, a brincar, que "não comia para viver: vivia para comer." Aproveitava as horas do tratamento para se deliciar com o chocolatinho de que tanto gostava ou qualquer outro pequeno pecado que lhe estivesse, normalmente, vedado. Alguns dias de tratamento eram, fisicamente, quase uma tortura. Voltava bastante abatida. Durante toda a vida, sempre que recuperava de alguma fase de maior desânimo dizia-me com aquele sorriso encantador "a avó já está a avó outra vez!" "Para a frente é que é o caminho!", era uma das frases que mais dizia.  Foi assaltada à porta de casa, arrastada pelo chão. Mais uma cirurgia e um implante no ombro. Mas a avó voltava sempre a ser a avó. Até ao segundo AVC. Coma novamente. Esperança. Medo. Muita esperança. Muito medo. Perda. Dor. Muita dor. "Nunca mais" é uma coisa que custa a entrar na mente de quem ama. Nunca mais vou ver o sorriso. Nunca mais vou ouvir a voz. Nunca mais. Nos primeiros dias custa a acreditar. Não parece real. Depois vamos caindo em nós, e a realidade cai-nos em cima com um peso esmagador, e ali fica, todos os dias a corroer-nos mais um bocadinho. Mas o tempo é generoso com quem sofre uma perda. Atenua a dor. Até atenua a saudade. Mas elas estão  lá. Aqui. Sempre. Latentes. Dormentes. A pulsar forte em certas alturas. Normalmente nos picos: quando nos sentimos perdidos, sem rumo, desanimados e pensamos que as palavras dela viriam mesmo a calhar. Ou quando estamos tão felizes que só queríamos poder partilhar isso com ela. E partilho, à minha maneira, no meu silêncio, no nosso silêncio em que eu espero que ela esteja presente, comigo, de alguma forma. E eu sei que está. Jamais esquecerei o dia de um dos meus exames na Faculdade. Antes de sair de casa, olhei para a nossa fotografia que tinha pendurada num quadro de cortiça. Pensei nas palavras de força e ânimo que sempre me dizia nas vésperas de exames ou audições. "Ilumina-me, avó. Que corra tudo bem." A fotografia, que nunca por nunca, em anos, caiu dali, deslizou suavemente pelo piano até ficar bem próxima dos meus pés. Sorri com os olhos lacrimejantes e, enquanto colocava a fotografia novamente no seu lugar, agradeci o apoio e a certeza de que tudo iria correr bem.
Aqui, noutro país, longe das minhas raízes, a saudade é maior. De vez em quando olho para ela na fotografia para ver o seu sorriso. O tempo tem também esse lado ingrato: vai apagando da nossa memória os contornos do rosto, a nitidez do som da voz. Não apaga jamais o amor. É o mesmo. Imutável. Não apaga as memórias das vivências. Não apaga a admiração, o orgulho. A minha avó é um exemplo de como amar a vida, de como celebrar cada pequena conquista, cada pequena coisa de cada dia. Viver é uma benção, e só depende de nós sermos felizes. Só depende de nós escolher a forma como queremos viver. Essa lição eu levo comigo para o resto da minha vida. A forma como a minha avó ficava genuinamente feliz por fazer o seu bolo preferido e depois sentar-se na sala a saboreá-lo enquanto via a sua série preferida na televisão. A forma como ficava feliz por, pelas suas próprias pernas, sair para comprar os ingredientes com que depois iria cozinhar os seus pratos preferidos ou, mais ainda, os nossos pratos preferidos. A forma atenciosa e generosa com que tratava toda a gente. A sua forma de amar, incondicional, respeitando cada um como era, sem tentar mudar nada. O altruísmo que sempre a caracterizou: a mais pura felicidade que sentia era ao fazer alguém que gostava feliz. A alegria que levou a tantas pessoas. A alegria que continua a trazer-nos só pelo facto de a termos na memória. E porque hoje é o aniversário da minha avó, aqui a relembro, com todo o amor, carinho e admiração. Como gostava que tivesse conhecido o meu filho! Ele olha para a fotografia dela e diz "é a bisa Maiela" É com ele que tenho completado a aprendizagem que comecei com ela: é tão fácil ser feliz, nas pequenas coisas, a cada dia, a cada momento. Ser feliz é uma escolha que se faz, a cada instante. Ao despedir-se em cada telefonema, dizia-me "Quero muito que sejas feliz, filha". Eu também quero, avó. E, como aprendi contigo, "o que tem de ser, tem muita força", e querer, neste caso, é poder.


3 comentários:

  1. A minha mãe era tudo isso e ainda mais era uma força da natureza e eu sinto muito a sua falta, muito...

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  2. Que texto tão lindo, tão genuíno e como tu também eu sinto cada palavra que escreveste da nossa avó. Uma verdadeira força!

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  3. Gostava de escrever assim...
    Tantas verdades...
    Percebo agora que a minha força vinha da minha mãe...
    e ela foi-se...
    Faz-me tanta falta, tanta...
    Gostava de falar com ela, ficaram coisas por dizer...
    Saudades...Saudades

    Branca

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