terça-feira, 31 de outubro de 2023

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Caramelos de nata. Compravamo-los na cantina da escola a 5 escudos cada. Vinham embrulhados num papel castanho claro. Não tinham um formato muito bem definido (muitas vezes pareciam amassados em alguns lugares). Colavam-se aos dentes. Era difícil comer só um. Eram viciantes.
Ontem comi um caramelo de nata. Sem formato bem definido (parecia amassado em alguns lugares). Colava-se aos dentes. Não consegui comer só um. Quando acabou, comi o outro que tinha na mala. Se fechasse os olhos a comer aquele caramelo de nata - o de ontem - podia imaginar aquela espécie de jardim suspenso que ficava sobre as nossas cabeças no caminho para a cantina da escola e que ficava repleto de abelhas na primavera, podia ver a parte telhada que ficava próxima, do lado esquerdo de quem ia, ouvir os meus amigos a brincar, naquele ruído difuso de gritos, risos e conversas. Podia imaginar que a Inês me tinha dado aquele caramelo, e antecipar o som da campainha que nos mandava de volta para a sala de aula. Na verdade, não me lembro se a Inês gostava de caramelos de nata, ou se os partilhavamos uma com a outra mas, de alguma forma, a memória daqueles caramelos de nata a 5 escudos cada, remete-me para a minha amiga Inês. Talvez porque a nossa amizade já vem desde ali, bem antes de sermos eternas parceiras no piano, e muito, muito antes de sermos a mãe do Mateus e a mãe da Beatriz. Talvez porque sempre a recordo sorridente e generosa - certamente partilhar caramelos de nata é uma coisa que ela faria com um sorriso! A verdade é que a nossa memória é cheia de lacunas que vamos preenchendo como podemos. Onde falta alguma coisa na história, acrescentamos algo que faça sentido para alguma parte de nós. Às vezes, temos por certa uma lembrança que já nem corresponde à verdade do que aconteceu. Voltando à minha amiga Inês, um dia, dizia-me ela que tinha encontrado não me recordo onde - poderia preencher esta lacuna com alguma coisa engenhosa, mas vou deixar assim mesmo, vago, embora tenha a ideia que esse encontro foi num avião - uma antiga colega de escola nossa. Não era da nossa turma, mas a escola era pequena, acabávamos por nos conhecer um pouco uns aos outros. Quando me falou desse encontro, a Inês acrescentou que tinha sempre uma sensação estranha, que a incomodava, em relação a essa antiga colega. Eu disse "ela batia-nos e ameaçava-nos naquele cantinho atrás da [sala da professora] Irene." A minha lembrança, muito fiel ou não à realidade, deu à Inês a sensação de "aha!" " Não tenho a menor lembrança disso, mas faz todo o sentido porque me sinto incomodada quando me recordo dela!", comentou ela. Bom, as minhas memórias não são lá muito de fiar...Recordo-me, daquela forma difusa, de estarmos naquele vão que ficava entre a parede da sala e o muro da escola, e de me sentir ameaçada. De alguma forma, a Inês partilha do meu sentimento, o que me faz crer que há um fundo de verdade na minha lembrança - e no desconforto que ela sente. Quanto aos caramelos de nata, fico feliz que a minha memória os associe - vá-se lá saber por quê - à minha amiga Inês. A Inês sempre espalha alegria, acolhimento e carinho por onde passa. É uma das pessoas que mais admiro, não só pelas suas qualidades, mas pela sua incrível habilidade de sempre navegar pela vida com leveza no peito e um sorriso no rosto. Se há alguém que merece ser associada a uma coisa tão doce e reconfortante como um caramelo de nata, é a Inês! (E, que tal, se na próxima vez que eu for a Lisboa, comermos caramelos de nata com os miúdos?)

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