terça-feira, 23 de maio de 2023

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Quando eu era criança, os meus pais compraram uma máquina de filmar. Com ela, filmámos aniversários, Natais, festas de escola. Depois de gravadas na máquina, víamos as imagens na televisão, conectando a câmara diretamente ou copiando-as para uma cassete. Lembro-me de ver as primeiras imagens de mim mesma. A coisa que mais me chamou a atenção foi a minha voz. Não era a minha voz. Verbalizei-o "essa não é a minha voz." Os outros não me entenderam. "Como assim não é a tua voz?" "Acho que a máquina muda a nossa voz, não é?", insisti, "Porque essa não é a minha voz. Não é assim que eu a ouço." Acho que só aí perceberam a minha dúvida. E concordaram comigo "Todos estranhamos quando ouvimos a própria voz. É normal. Soa diferente mesmo."
Por estes dias, relembrei este episódio com uma aluna minha, porque falávamos sobre como é diferente a percepção que temos do som enquanto tocamos e estamos ali no universo do teclado, e enquanto nos ouvimos "de fora" como quando nos gravamos, por exemplo. Muitas vezes, ao ouvir uma gravação nossa a tocar/cantar, percebemos que certas nuances que achávamos estar a conseguir "passar" para o ouvinte, não estão a chegar lá, não se expressaram de forma significativa. Percebemos que outras coisas estão em excesso. Aquilo que julgamos estar a comunicar, nem sempre corresponde inteiramente ao que, de facto, expressámos. Aquilo que julgamos estar a entregar nem sempre é o que o outro está a receber. Refleti como esta habilidade de tentarmos ser expectadores de nós próprios é essencial em tudo na vida. "Entre o que eu penso, o que quero dizer, o que digo e o que você ouve, o que você quer ouvir e o que você acha que entendeu, há um abismo." (Alejandro Jodorowsky) Muitas vezes pensamos estar a expressar-nos com certa "voz" mas a outra pessoa ouve "outra voz". Muitas vezes achamos que estamos a ser claros na nossa comunicação, mas a outra pessoa não está a absorver ou entender o que tentamos comunicar. O inverso também é verdade: muitas vezes julgamos ouvir no outro algo que não era, de facto, o que ele queria expressar. É importante fazer esse exercício de investigar como estamos a exprimir-nos, como a nossa voz está a chegar aos outros. Porque algumas vezes, entre a voz que julgamos projetar e aquela que, realmente, chega aos outros, há uma discrepância, que é suficiente para gerar equívocos e problemas de comunicação. Assim como a distância a que estamos da projeção do som torna distinta a nossa percepção e experiência do mesmo, os pré-conceitos, crenças, pré-julgamentos, medos, expectativas que temos, interferem na interpretação que fazemos de tudo o que nos é dito. Nunca há um mero dar e receber, porque todas as coisas passam por todos os nossos filtros. Talvez a melhor forma de dar e receber seja reduzir os filtros nos quais estamos enredados. Talvez assim possamos expressar, de facto, a nossa voz e ouvir a do outro.

(P.S. Continuo a não me identificar com a voz que ouço nas gravações, mas já a reconheço como a voz que os outros ouvem de mim.)

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