quinta-feira, 30 de novembro de 2023

196-365

 Quando tocamos piano, muitas vezes temos várias notas em simultâneo, seja numa mão só, seja distribuídas por ambas as mãos. Um dos desafios do piano é, precisamente, conseguir um bom equilíbrio sonoro entre todas as notas que estão a soar ao mesmo tempo. Muitas vezes, é preciso escolher a qual ou quais delas vamos dar mais relevância. No entanto, mesmo aquelas que não queremos destacar tanto, têm de estar primorosamente tocadas, apenas na intensidade que escolhemos tocá-las. Quando queremos fazer esse tipo de trabalho, é preciso ouvir, entre toda a malha sonora que estamos a tocar, uma linha apenas ou, caso se trate de uma questão de equilíbrio entre ambas as mãos, em qual delas queremos que a nossa escuta recaia. Não raras vezes, isso gera-nos uma dificuldade: quando mudamos o nosso foco de atenção da linha principal, por exemplo, para uma secundária, ou mesmo de uma mão para a outra, sentimo-nos perdidos. De repente, começamos a ouvir algo - ou a não ouvir algo - que foge à nossa expectativa, e isso destabiliza-nos. Idêntico ao que acontece quando estabilizamos numa posição de equilíbrio e, depois, fechamos os olhos: perdemos a referência que tínhamos criado e, com isso, perdemos o equilíbrio novamente. Também no piano, quando perdemos a referência sonora que tínhamos, por exemplo em uma das mãos, começam a surgir erros e/ou dúvidas na outra mão. Por outro lado, quando tiramos o nosso foco daquilo que estamos habituados a ouvir para prestar atenção a outra linha, ela surge como nova! De repente, começamos a aperceber-nos de pormenores, nuances que até então tinham-nos escapado. Essa nova forma de ouvir, enriquece a nossa audição e execução. E assim é com a vida: por vezes estamos "presos" a uma forma de "ouvir" o que nos rodeia, e não nos apercebemos de tantos outros "sons" que estão à nossa volta. Assim como mudar o foco na nossa escuta de uma música faz uma nova música surgir e enriquece a nossa experiência, mudar o nosso foco na forma de olhar para o mundo, faz um novo mundo surgir e enriquece e aprofunda a nossa forma de estar no mundo.

Não acredite em mim: experimente! Na próxima vez que ouvir a sua música favorita, procure tirar o foco da melodia principal e prestar atenção a algum outro instrumento, a uma voz secundária, e veja como vai aperceber-se de coisas que em dezenas de vezes em que ouviu essa música nunca se tinha apercebido. Ou, quando fizer aquele mesmo caminho para casa, preste atenção a coisas que nunca viu nesse caminho. Elas estão lá. Veja por si mesmo. 

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