quinta-feira, 16 de novembro de 2023

186-365

 "Estica a ponta do pé", "joelhos esticados", "barriga para dentro", "atenção aos dedos da mão", "esse dó um pouco mais, e o ré seguinte um pouco menos", "sincroniza melhor as notas do acorde", "rigor no andamento". Desde pequena, envolvi-me em atividades que primam por uma busca minuciosa da perfeição. Na ginástica artística, qualquer pequeno desequilíbrio, desalinhamento no corpo, imperfeição na posição de pés, pernas ou mãos, prejudica a beleza estética dos movimentos (e significa décimos a menos na nota final). Na música, há uma constante busca por moldar o som da melhor forma possível. Todo e qualquer detalhe faz diferença na forma como se fraseia. Há passagens em que cada nota é milimetricamente planeada para que, no resultado final, todas se encaixem de forma a que consigamos atingir a expressão mais verdadeira possível. Em ambas as atividades, há uma enorme exigência de esforço, empenho, dedicação. Há um "querer fazer" sempre mais, sempre melhor. É preciso tempo para aprender os movimentos, para os entender, paciência para os dominar, para se apropriar deles, para que sejam "nossos", e investigação para optimizá-los o mais possível. É essencial ter uma intenção firme, uma construção mental de onde se quer chegar. É preciso acreditar que é possível chegar lá. Depois de todo o trabalho feito, de cada gesto estruturado, organizado, depois de perseverantes e contínuas repetições, é necessário confiar no trabalho feito, e entregá-lo, entregando-se ao momento. A disciplina e o trabalho têm que ser feitos com tal minúcia que nos permitem esquecê-los, ir além da técnica e chegar nas sensações. É preciso trabalhar até que o trabalho se torne "invisível". Depois do trabalho feito, é preciso desprender-se desse labor e abrir-se à possibilidade de tudo o que pode acontecer. É aí que a magia acontece. Quando já não há um querer fazer, mas apenas um Ser. Quando se vai além do gesto, porque ele está em nós, além da técnica porque a executamos sem a perceber, e podemos, camada a camada, transbordar naquele momento. Mergulhamos nele, ele atravessa-nos e preenche-nos ao mesmo tempo que é preenchido por nós. E depois? Começamos tudo outra vez, com o mesmo empenho, zelo e desprendimento. Nunca sabemos onde o caminho nos vai levar.

Sem comentários:

Enviar um comentário