terça-feira, 14 de março de 2023

73-365

 


Quando tocamos piano, há uma dualidade que nem sempre é fácil de gerir: um envolvimento e entrega absoluta a cada nota que se toca e, simultaneamente, uma certa distância e abstração do resultado daquilo que se está a fazer. Ou seja, o nosso estado de presença é imperativo, e é por isso que, num aparente paradoxo, precisamos da tal abstração: não podemos nem celebrar a nota que foi extremamente bem tocada e nem lamentar a nota que errámos. Em qualquer um dos casos, perdemos a concentração (presença), e arriscamos errar em seguida. Além disso, a nota que acabámos de tocar já não é passível de ser modificada. O nosso foco tem de ser sempre a nota seguinte, que é a única em que podemos agir.
No Bhagavad-gita, uma das escrituras sagradas do yoga - e um livro que, além de repleto de sabedoria, e um dos mais bonitos que já li - lê-se "Mas quem permanece sereno e imperturbável no meio do prazer e do sofrimento, somente esse é que atinge a imortalidade." O grande objetivo do yoga é, de facto, serenar as flutuações da mente - o que é alcançado pelo autoconhecimento (olhando para o mundo interior, aprendemos como funcionar melhor no mundo exterior). Isso significa que um dos grandes objetivos do yoga é o que se chama equanimidade da mente: uma mente equilibrada seja em que circunstância for (positiva ou negativa). Este é, precisamente, o distanciamento que temos de ter ao executar uma peça no piano: mantermo-nos estáveis independentemente de acertar ou errar, de alcançar a nossa melhor performance ou não. O nosso envolvimento e entrega não se afetam no momento da execução: a cada nota tocada, a nossa presença está ali, com ela, não no resultado que obtivemos dela. E é nesta dialética entre entrega e desapego que a música (e a vida) acontece(m). 

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