segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

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São incontáveis as vezes em que já me perguntaram "Você não é daqui, não?" A última vez foi um taxista. Ouviu-me dizer qual o nosso destino, ouviu-me trocar algumas frases com o Mateus e lançou a tal da pergunta. Respondi que "não...quer dizer, eu não sou, ele é dos dois lugares". Eu não disse de onde sou, e ele continua "É, o português dele já é bem melhor!.." O que eu me ri! Ainda me rio aqui a relembrar a história e a escrevê-la. O Mateus olhou-me com ar de interrogação. Eu respondi, ainda a disfarçar o riso, "É, para aqui, o português dele é melhor, sem dúvida, para Portugal, provavelmente, o meu é melhor". O senhor ficou, visivelmente, surpreso por eu ser...portuguesa, e falar a mesma língua que ele!
Partilho este episódio não pelo caricato da situação mas porque ele, aparentemente insignificante foi, para mim, cheio de significado. Por um lado porque é como sempre digo " na vida, é tudo uma questão de perspectiva." O que é bom e mau, melhor e pior? São só perspectivas. E, vou mais além, isso realmente importa? E, segundo, e mais importante - desculpem-me permitir-me a mim mesma este momento, mas acho essencial irmos celebrando as nossas pequenas vitórias - a Joana Gabriela de há 10 anos atrás jamais, jamais viveria este episódio com tamanha leveza e bom humor. Eu fartei-me de rir com o senhor e rio-me sempre que conto esta história. Não me senti minimamente ofendida ou atacada. Se fosse há 10 anos atrás, eu teria ficado fula "Como assim o meu português é pior?! Que palhaço! Eu, portuguesa, com um português pior! Essa é boa!" Assim como ficava fula quando me diziam "O seu sotaque ainda é bem forte, não?" Pensava "Como assim, o meu sotaque? São os brasileiros que têm sotaque, não eu!" Mais uma vez: é tudo uma mera questão de perspectivas. E o problema é que há 10 anos atrás, eu estava tão apegada à minha identidade como portuguesa que, a qualquer comentário acerca dos portugueses ou Portugal, eu sentia-me atacada. O perigo de criarmos fortes identificações é que elas nos colocam em pequenas "caixas" que nos confinam. Quanto mais nos sentimos pertencentes àquela caixa, mais queremos defendê-la e, quanto mais a defendemos, mais lhe pertencemos e menos dispostos estamos a sair dela e ver como são as outras caixas - ou, eventualmente, perceber que não temos que viver em caixas...Então, é esta pequena vitória que eu celebro: um pouco mais de desapego na minha vida. E não me interpretem mal: eu amo Portugal, amo mesmo, muito (não vejo a hora de lá voltar e de voltar para lá), só que percebo agora que ser portuguesa não me define. Ser portuguesa define-me tanto quanto ter olhos verdes. Se alguém me disser "pessoas de olhos verdes são assim ou assado", eu vou ouvir a opinião, respeitar e, sem a menor necessidade de me defender, seguir com a minha vida, porque a cor dos meus olhos não é quem eu sou. Eu não sou o meu sotaque, não sou a minha nacionalidade, nem o meu nome, nem o meu género, nem a cor dos meus olhos. E, por mais que o lugar em que nascemos nos influencie nas vivências e crenças que temos, nada disso é quem somos, em essência. Ser portuguesa definiu parte da minha experiência até aqui, mas não quem eu sou ou o que faço com ela. (Aliás, muitas das coisas que acabamos por absorver em função de cultura, sociedade, etc, impedem que nos conheçamos a nós mesmos.) Não me canso de citar estes versos de Alberto Caeiro:

"Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu."

Então, a minha pequena celebração é esta: mais um pouco de "tinta raspada" que me permite espreitar o que me é revelado nesse espaço que aí surge. (E cada espaço que ganhamos, é mais liberdade e leveza na nossa vida.)

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